sábado, 30 de maio de 2015

A ARMADILHA ATRÁS DA PORTA



Quase vinte anos. Moro na casinha romântica do Potengi, Zona Norte. A porta, amarelo cetim, ordinária, enfia-se facilmente a unha e logo faz morada o cupim. Jamais fecha à chave e à noite. Por ser desnivelada, tem uma fresta em cima e outra embaixo, mas é pintada. A cobertura é de telhas. Não tem grades nem muro alto e fica a menos de 100 metros do Caldeirão do Diabo, de onde todas as noites fogem presos sob chuva de balas cuja proximidade parecem vir do quintal escuro. Nos primeiros meses, assustada, meto-me debaixo da cama, trêmula, desamparada. Entretanto, com o passar do tempo e o convívio simpático no Bairro, sou indiferente ao zimmmm... dos rifles, ora da polícia, ora de fugitivos. Durmo tranquila com o meu Pedro Ivo pequeno. Jamais o serviço de vigilância, jamais latir de cachorro. Porém, carrego do sótão a armadilha infalível. Pois bem, antes de deitar penduro as vasilhas atrás da porta da cozinha. Quanto à porta da sala, que nunca fecha por ser emperrada e arrastar com barulho no piso gasto, dificulta a ação gatuna e sutil do visitante noturno. Este, tomado de desprezo ao perceber que a facilidade da porta encostada é sinal de que nada ali vale nada, a não ser para a dona da casa, diz: "merda!", cospe e vai embora.

Ana Barros
Natal, 30 de maio de 2015.

Foto: https://www.facebook.com/camacarifatosefotos

domingo, 24 de maio de 2015

FILHOS DE CAM



Para quem estuda o Velho Testamento não é nenhuma novidade conhecer a origem das nações segundo a tradição judaico-cristã. Mas para quem não segue religiões, tampouco lê ou se interessa por entender a existência humana através dos textos bíblicos, mas que se interessa pelo assunto, a arte é leitura e descoberta. Um exemplo da segunda escolha, diria, espontânea, aleatória, é o leitor curioso e apaixonado pela poesia de Rimbaud deparar-se com o inquietante poema Mau Sangue, de Uma Temporada no Inferno. É justamente em Rimbaud, que amou o sol da África e nele queimou-se para ficar ainda mais negro, pois já era de alma, que encontrei a mais bela metáfora para a origem das nações, ou melhor, de uma nação, a africana. No longo poema, o poeta faz dura crítica ao continente europeu – sua origem branca e colonizadora – e aos seus mandatários, "falsos negros": "Sim, tenho a vista fechada à vossa luz. Sou um animal, um negro. Mas posso ser salvo. Vós sois falsos negros, vós, maniáticos, irascíveis, avarentos. Comerciante, és negro; imperador, velha sarna, és negro: bebeste o vinho não tributado da fábrica de Satã. – Esta gente está inspirada pela febre e o câncer. Doentes e velhos são tão respeitáveis que pedem para ser fervidos. – O mais astuto é deixar este continente, onde a loucura corre para fornecer reféns a esses miseráveis. Entro no verdadeiro reino dos filhos de Cam". O verdadeiro reino dos filhos de Cam, ou Cão, é a África, povoada pelos descendentes do segundo dos três filhos de Noé – Sem, Cam e Jafé. O texto Origem das Nações, https://almalavada1.wordpress.com/2013/04/16/origem-das-nacoes/, faz menção a duas interpretações do personagem bíblico. A primeira, de um pastor evangélico a respeito da maldição de Noé contra Cam, condenando os descendentes deste à etnia negra, ou seja, a nação africana seria a punição do filho amaldiçoado. A segunda, nada a ver com cor de pele mas com outra discriminação, sugere que Cam, por ser homossexual e desejar ver seu pai nu,foi amaldiçoado por este. São inúmeras as versões e piadas criadas para explicar de forma pejorativa, senão criminosa (Ku Klux Kan), o princípio da vida de não brancos. Indiferente a todas, fico, pois, com a poesia de Rimbaud. Poesia da liberdade do além senso comum, pátria, moral, credo. Liberdade além-do-homem.

Ana Barros​  
Natal, 21 de maio de 2015.

domingo, 17 de maio de 2015

MAGA



As vezes em que eu voltei e você estava à minha espera
eu voltei trazendo menos do que levara
Não por maldade ou por extraviar os presentes
com os quais você se veste e dividiu comigo
Mas porque longe
onde não tem abrigo e o excesso é tambor
a ferrugem desceu escada abaixo: é sujo o que não prega
Você que ficou e agora rasga a minha pele
vasculha onde o ferrão cresce
Não vê que ele derrete e
nada mais fere

Ana Barros
Natal, 12 de abril de 2015.

quarta-feira, 6 de maio de 2015

NAMORADEIRA



Nenhum jovem hoje sabe o que vem a ser "alisar banco", termo abusado por pai zeloso da honra da filha, bem como odiado por casais enamorados décadas atrás, cuja obrigação de casar era determinada pela boa ou má intenção do rapaz, avaliação que o pai da moça fazia de acordo com o tempo gasto no banco. Se percebia que o futuro genro estava com enrolação, ou seja, “alisando banco”, cuidava de dar um prazo para que cassassem logo ou, do contrário, caísse fora. E assim, mal completava 14, 15 anos, jamais chegava aos 18 sem um pretendente, a jovem, para não ficar “falada” nem ser chamada de “moça-velha”, tinha que acolher, se não a vontade do namorado apressado para ter a posse de uma mulher, a escolha apressada do pai, que não admitia filha “encalhada” dando despesa e o que falar à vizinhança. A minha geração (1960) está entre as primeiras a romper com o banco, já alisado além da conta por castos e românticos amantes. Começava aí outra história, mais livre e com menos culpa. Era a época dos hippies, Beatles, “paz e amor”, da liberdade sexual, pelo menos na Europa e Estados Unidos. Por aqui tínhamos a versão nativa com a jovem guarda, estilo do qual vi os meus irmãos mais velhos e seus amigos fazerem parte. A minissaia tornou-se o inferno na minha casa. Todos os dias meu pai ameaçava cortar com a faca o minúsculo vestido da minha irmã. Meu irmão resolvera não mais cortar os cabelos, usava calças boca de sino, sapato cavalo de aço e ouvia rock. Alisar banco em casa de pai brabo e casar à força? Nunca mais.  Um pouquinho mais adiante, final dos anos sessenta, e toda a década de 1970, as relações sensuais entre homem e mulher haviam mudado bastante.  A sala de visitas agora é do aparelho de TV e de duas espreguiçadeiras onde os donos da casa cochilam e assistem novelas enquanto os filhos estão na rua. Dessa época ficou a lembrança gozada do “sarro” tirado na porta da igreja, no escurinho do cinema, na árvore da praça, ou no canto do muro da casa onde os pais dormiam. Claro, escondido. Estes, agora “civilizados” por terem deixado a roça e mudado com a família para a cidade, vigiavam de longe com os olhos na hora e a mão na chibata. Mas isso é assunto para outra crônica. Voltemos ao banco. Pois bem, era regra incontestável o namorado chegar cedo da noite na casa da amada, coisa das sete horas, e ficar na sala de visitas de frente para os pais da moça até o momento em que o dono do pedaço começava a bocejar e resmungar. A dona da casa, cansada das tarefas diárias e da incômoda vigília, pois sabia por experiência a agonia que é namorar sem achegar, contava mais de dez cochilos quando o pêndulo do relógio da parede dava 21 batidas. O rapaz levanta da namoradeira, alisa as calças, pega o chapéu, dá boa noite e some no pé do vento.

Ana Barros
Natal, 04 de maio de 2015.