Sou aquele tipo com quem a sorte nunca flertou. Por mais que me esforce, por mais
simpatia e charme jogados aos quatro cantos à espera que a danada dê aquele
empurrãozinho, nada, nenhuma contemplação comigo. E foi enxergando esse lado
esquecido pelos deuses malvados com os invisíveis, que eu resolvi muito cedo a
estar atenta aos mais insignificantes gestos jogados aqui e acolá aos meus pés
como a dizer, “olha, eu sou interessante”. A partir daí não mais desprezei
nenhuma migalha caída. Percebia enfim que a sorte vinha, sim, só que disfarçada
em signos cuja importância seria eu a dar. Dependia só de mim, decifrar e
avaliar. E no impasse diante do enigma “decifra-me ou te devoro”, passei a forjar,
eu mesma, a minha sorte.
Ontem,
21 de outubro, dia do meu aniversário, como acontece depois que descobri a
mentira que é “ter sorte”, foi um dia quase comum não fosse pelas três ligações
que recebi, as mesmas de sempre, do meu filho, da minha mãe e da minha irmã por
adoção há 30 anos, e pela surpresa, que só foi surpresa porque eu estava
atenta, de encontrar no lixão próximo de onde corro à tarde, um pequeno móvel
antigo, igual ao que havia admirado na parte da manhã em um site, cujo valor passava de três mil reais, presente além de caro, desnecessário.
Me aproximei do entulho, levantei o pobre móvel e vi que estava completamente
danificado, mas nada que não pudesse ser recuperado para engrandecer a minha
abundância de sorte. Porém... como levar até meu apartamento aquele movelzinho apesar
de desgastado tão pesado? Além de atrapalhar a minha corrida, havia o risco de
ter de abandonar o achado para um catador de lixo que passava de olho comprido
na ânsia de disputar comigo o que havia sido jogado fora por alguém que apreciava trocar usados por novos. E em questão de segundos de
devaneios espanta azar, não é que surge à minha frente um senhor, seu Antenor,
empurrando um carro de mão cheio de cacos de telha e de tijolos para
avolumar ainda mais a montanha de lixo no terreno baldio. Perguntei se ele
levaria o móvel até a minha residência e ele, gentilmente, disse que sim. Vi
naquele senhor mais um presente que a vida me dava e aproveitei a ocasião para
enriquecer a dádiva com algo que pudesse ser bom para nós dois. Foi aí que veio à lembrança meu guarda-roupa capenga pelo uso e abuso do “vuco-vuco”. “O
senhor monta móvel?” Perguntei. “Monto, desmonto, faço serviço de encanação,
eletricidade e limpeza de condomínio”, disse satisfeito e sem nenhuma pretensão
além de ser naturalmente bom com o vizinho. Já no
apartamento: “Pois bem, venha no final da semana consertar os dois móveis, este
e o guarda-roupa.” “Pode me aguardar, meu telefone é 87...” “Quanto?” “R$
40,00.” Tive vontade de dizer, “é muito barato”, mas contive o impulso. Quem
sabe é preciso estar mais uma vez – atenta?
Ana
Barros
Natal,
21 de outubro de 2014.
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