Nada mais estimulante à curiosidade ociosa
que caminhar em fim de tarde em rua de burguês. Sempre há
no percurso alguma coisa que chama a atenção pelo valor e
importância dada até então à vida de alguém que,
nascida outra necessidade, abandona o objeto vestido de alma
aonde alguém passa com os olhos à cata de algo – com alma.
Foi assim quando eu caminhava em frente à casa em reforma e vi
o guarda-roupa atirado à lama. Parei indignada
com a dona do móvel – dona
porque havia abundância
de evidência feminina. Ela, além de não ter os bons modos
da moda, zerava no gesto insólito as impressões tão somente
as dela. Ao me aproximar pude ver as marcas de dedo e de batom
no espelho cego. Toquei as manchas vermelhas em forma de beijo
e amei digitar na rua: “Alô... Ribamar?
venha com a leveza e a força nua”. Não mais que
o tempo de agachar e pegar o alfinete preso à fotografia
extraviada do sigilo rasgado passou para que Ribamar erguesse as
tábuas
desconjuntadas do ancião quebrado.
Já em casa enxuguei os pingos caídos dos frisos na
fuligem negra da arte gótica. Olhei feliz o resultado e
encostei o guarda-roupa ainda mais velho na parede cinza
do quarto de Aline. Ali, entre o batom roxo,
roupa esgarçada e sapato preto da menina, o marco zero
dava corda e começava de novo: tic-tac tic-tac tic...
Ana Barros
Natal, 19 de janeiro de 2016.
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