O papel de embrulho
cortado em partes iguais e estirado em cima do balcão aguarda o freguês com uma
pedra gasta em cima. Barras de sabão coladinhas uma à outra se transformam em
pequenos tijolos de meia a um quarto de barra. Chegaram também o saco de
bolacha e o de açúcar. O chão se faz mel da poeira doce misturada ao suor dos
pés de quem, pra lá e pra cá, pesa, embrulha e arruma os pacotes de um quilo,
meio quilo, uma libra, meia libra... O freguês diz quanto quer. Bodega
abastecida é arrumação das necessidades de quem chega. E o dono sabe a precisão
de cada um. Bodega abastecida é estética do que se planta, do que se come,
embeleza, diverte e cura. Basta observar a caixa pequena decorada com
propaganda para logo adivinhar que ali vai encontrar: cibazol, melhoral,
sonrizal e band-aid. Colada à parede e com tranca, um expositor de vidro
protege de mãos inábeis os frascos de Seiva de Alfazema e os sabonetes Gessy. Toda
bodega traz em dia de feira as prateleiras abastecidas de mantimentos e cheiros.
Estes, de todos os tipos, não importa se molhado, seco, doce, azedo, ou ardido
de peixe. Sentindo o odor forte do fumo de rolo enrodilhado nas folhas de
tabaco, o homem deixa de lado a bolsa de palha e dá garra da peixeira que traz
embainhada às costas. Corta uma pele do tamanho de uma casca de alho e masca
como se fosse chiclete. Pouco depois um pequeno riacho de saliva escura escorre
no pé do balcão... Já o freguês da cidade
prefere o “cigarro da praça”, não o de palha: Continental, Plaza, Minister,
Hollywood, entre outras marcas que, por falta de dinheiro ou por estimular a
ida até a bodega, o freguês opta por comprar a carteira de cigarros fracionada. E assim, de cima abaixo do balcão, divididos
ou não, encontramos os produtos sem os quais passamos privações, seja pelo
vício, seja pela fome. O charque e o porco salgado criam salmoura e varejeiras na
bacia de flandres sobre a banca posta na calçada. Pirulitos e rasga-boca enchem e colorem os
vidros longe dos meninos ansiosos que ficaram em casa. Sacos de feijão, de arroz,
de farinha e milho com a boca aberta e a medida pronta para levar à balança os
grãos escolhidos, são mexidos, cheirados, mordidos, aprovados ou não diante da
descoberta de algum caruncho ou outra praga que denuncie a idade avançada do
grão. A rapadura, arrumada nas palhas da cana trançadas num garajau, expõe-se
sobre o tablado no qual o açúcar empacotado já se encontra arrumado. Alimentos
pesados e organizados. Chegou a hora de receber a cachaça, que vem da Paraíba
na barrica de taboca presa ao bagageiro da bicicleta. Várias garrafas de vidro enfileiradas
na calçada recebem a aguardente da mangueira sob olhares do bebum ávido por uma
“lapada”. Na passagem de um vasilhame a outro ele apanha as gotinhas num caneco
e, ao final da transposição, está completamente embriagado. Garrafas cheias,
fechadas e dispostas na prateleira bem em frente, serão esvaziadas em “meiota”
e copos engana bêbado por homens que chegam sóbrios e voltam para casa alegres
e cheios de sacos pendurados na cangalha do burro. Na entrada da bodega, ao
lado da porta, tem o tambor de óleo enegrecido pela fuligem da rua colada ao
querosene das lamparinas. A torneira despeja a medida na lata tantas vezes o
freguês peça. Mas já é tardinha e os donos da bodega arfam de cansaço. Deixam a
desordem pra lá, que espere o outro dia. Sentam-se próximo à gaveta que há sob
o balcão e contam o apurado. A missa começa logo mais, já foram dadas duas
badaladas no sino, falta uma, tempo suficiente de vestir a roupa de domingo,
colocar as moedas menores no bolso da calça e agradecer a Deus no
ofertório.
Ana Barros
29 de outubro de 2015.
Saco de pão |
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