Há algo que ainda hoje chama a minha atenção na Semana Santa: os santos
amanhecem na quarta-feira de trevas cobertos, da parede ao oratório, com panos
negro e roxo. Aliás, a partir de hoje, quarta-feira, era norma não chamar
palavrão, exagerar na gula, varrer a casa, pentear os cabelos e ser feliz, isso
incluía dançar, comer carne, beber cachaça e fazer sexo. Quebrar as regras era
pecado horrível. Diziam os mais velhos que se tomássemos banho nesse dia
entrevaríamos. Confusão feita entre as trevas da paixão, morte e páscoa, com
entrevar, ficar paralítico. E assim, a molecada e os idosos que não apreciavam
o banho, misturavam seus cheiros de quaresma com o odor ardido de peixes e
algum naco de bacalhau que, não hoje, mas lá atrás, tanto a iguaria da
"Noruega" quanto o Queijo do Reino, aquele das cumbucas de lata que,
vazias, os mendigos usavam para esmolar nas feiras, sempre apareciam na mesa de
algum pobre. Em casa de meus pais tínhamos os dois, uma vez no ano. Mas, voltando
às imagens austeras com suas faces cobertas para evitar o humano demasiado
humano, gostava de ver o efeito causado pelos panos de renda, mantilhas ou seda
translúcida descidos sobre os ícones. Mais tarde lendo A Casa dos Mortos, de
Dostoiévski, reencontrei nas imagens piedosas no presídio, imagens filtradas
por uma réstia da telha sobre o rosto de um enfermo, a mesma luz inclinada a
deixar ainda mais melancólico o ritual cristão na sala pobre da minha casa.
Jamais me interessei em saber o porquê daquele cenário. Jamais tive interesse
em saber lições doutrinárias. O que eu queria era só contemplar, e sentir, o
efeito da luz que atravessa o véu ressalta, e ao mesmo tempo dissimula,
semblantes tão tristes e humanos quanto os rostos desfigurados na dor e
resignação dos personagens russos, nem um pouco diferente dos nossos
encarcerados de todos os tipos e prisões.
Ana Barros
Natal, 01 de abril de 2015.
Natal, 01 de abril de 2015.
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