Não sabia o que fascinava em ter minha
casa entre duas famílias com crianças. Do lado direito, Ana, do esquerdo, Vicente,
ambos de cinco anos. Os avós, os pais e tios de Ana ralham com a menina o dia
todo. Os avós, os pais e tios de Vicente amam o menino o dia todo. Eu, entre
eles, me delicio. É tanto que viajei um dia desses para o interior e lá tive a
impressão de ouvir Vicente dirigir seu carrinho e conversar com seus camaradas
de imaginação. Ouvi também a avó de Ana gritar com ela e a traquina responder
com sua inocente espontaneidade. Sorri satisfeita e me lembrei da desordem e dos
sons que chegavam até mim vindos das duas casas. Barulho de coisa viva-quente-inquieto-buliçosa.
Seria só a impulsividade das duas crianças
e o nervosismo dos adultos ao seu redor que tanto me atraiam? A viagem fez
compreender que não. Havia outro lado, sombrio, que ainda não conhecia, mas que
espreitava o momento certo de se revelar: a solidão, o silêncio, a paz, a ordem
que chega com o desaparecimento da inocência, inocência que eu tinha o
privilégio de mais uma vez experimentar, primeiro por ser avó de Heitor, também
com cinco anos. Segundo, por residir próximo à desobediência dos dois pequenos. Além disso, a viagem trouxera à
luz outra face da vida, aquela que se esvai na reclusão da casa daqueles que
perdem a leveza da cumplicidade juvenil, ou por doença, velhice, ou por abandono
mesmo ao enfado da vida.
Daquela vez visitei dois amigos já
bastante idosos, Sther, viúva, sozinha, 72 anos, e Olegário, 80 anos, casado e
com filhos já casados. Fui primeiro à casa do velho. Apesar de morar com a
família, encontrei-o só e desesperado. Tinha mal de Parkinson. A ordem, o
silêncio e o vazio absorviam aquele homem forte e ainda com os vestígios de uma
virilidade consumada. Era agora uma pessoa sozinha num espaço que conheci noutro
tempo cheio de vozes, discussões, risos estridentes, som de viola (ele era
músico), de pandeiro, batida de talheres nos pratos pelos jovens da casa numa
performance entre camaradas: pai e filhos. Ao avistar Olegário lembrei-me de Otávio
Lamartine e de Hemingway, que se mataram numa idade já bem avançada: teriam eles chegado ao ponto final do duelo
que mantiveram com a morte durante toda a vida? Ou os meus amigos
desconheciam qualquer conflito com a morte ou, ao contrário dos dois
escritores, duelariam até o último instante? Jamais consegui saber.
Sther também estava só quando a
visitei. Os filhos ausentes. Ainda não havia tomado banho por não conseguir
desabotoar o vestido. Olhei em torno e observei que as almofadas estavam
geometricamente em ordem sobre o sofá bem conservado, não havia sequer um gato
para desarrumá-las. O piso brilhava, os lençóis das camas não desenhavam formas,
sinal de que ninguém ali se deitava há bastante tempo. A casa da minha amiga
estava em ordem. Foi inevitável a lembrança de Ana e Vicente, e agora de
Heitor, deixando um rastro de desordem e alegria por onde passavam.
Despedi-me da minha amiga com a
incômoda sensação de que consumimos toda a nossa juventude, toda a nossa
energia criativa desejando que os filhos cresçam para que, enfim, possamos
ficar sozinhos e em paz. E um dia a solidão e a paz batem a nossa porta, entram
não como convidados alegres feito crianças, mas como fantasmas de nós mesmos a
nos cobrir de passado e remorso. E aí, de tanto querer e pedir silêncio, de
tanto reprimir o riso e alegria de viver, de tanto condenar a volúpia existencial,
de tanto ir à igreja rezar pela paz e a ordem, eis que o silêncio mais cruel entrou
em nossa casa, que agora está fechada, em paz, em sossego, em harmonia com o
tédio mortal.
Ana Barros
Natal, 20 de maio de 2012.
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