quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

PACTO



Último dia do ano. Encostei o carrinho atrás do senhor de cabelo acaju e esperei. Passados alguns segundos ele percebe que há um caixa exclusivo para idosos e faz o comentário alto e em tom de gozação: “quer dizer que a fila da sucata é aquela ali?”, aponta para o lado confiante na plateia para o que acabava de tornar público, ou seja, que era um osso velho. O homem parecia ter acabado de sair do salão de beleza, pois tinha vestígios de talco no pescoço e manchas de tinta no casco da cabeça, visíveis graças à careca já bem desenhada. Mas não era só ele que demonstrava alegria misturada à necessidade de ser simpático naquele final de ano. Todos na loja estavam igualmente felizes e ansiosos por comemorar a data em algum lugar que não fosse a casa. Tinham pressa de pagar e sair correndo para dar tempo de arrumar as bebidas na geladeira, preparar os espetinhos do churrasco, desamassar a roupa branca comprada de última hora, transferir a TV de 50 polegadas e o telão para a varanda com bandeirolas e encontrar os amigos sem disfarçar o sorriso de vitória. Mas vitória de quê, perguntei aos meus botões enferrujados no limbo das derrotas de mais um calendário que chegava ao fim. Não tinha vitórias para sorrir nem ânsia de chegar a lugar algum. Enquanto esperava ser atendido, e torcia para que demorasse mais um pouco, divertia-me calado, pois nem eu queria falar àquelas pessoas alegres, tampouco elas, pela minha antipatia não dissimulada, tinham o menor interesse em saber o que eu pensava em lhes dizer. Paguei as compras e saí com a palavra “sucata” a encher o crânio estreito para caber metáforas. À noite, ainda ruminava as três sílabas quando acessei a Internet e abri a caixa de mensagens pela décima vez à espera de um milagre, ou seja, de um “alô...”. Nada, nem uma palavra, sequer um desgastado “Feliz Ano Novo”. Mais uma vez “sucata” retornou e enfim pude entender o que o velho da fila queria dizer. Pois bem, naquele momento em que reconhecia o seu território, firmava o mais novo pacto entre ele e o tempo, o qual não era exclusividade sua e sim de todos os viventes, porém, ele tinha que parecer único, e era, naquele instante particular ao assumir a nova condição que anunciava como “sucata”. Tinha que ouvir a própria voz ecoar a palavra que não podia dizer em silêncio a si mesmo. Velho, sim, ele era agora um velho e sem a mais remota possibilidade de voltar a não ser. Mesmo com todos os recursos da cirurgia plástica, se porventura viesse utilizá-la, a sua fase de velho não seria negada e sim tornada mais visível ainda, uma vez que os jovens são outros e outros os seus interesses e amigos, daí a indiferença destes para com quem envelhece e o olhar zombador daqueles que, igualmente com os dias de futuro contados, sabem com exatidão o que fazem os de seu tempo para atrasar o relógio. Ou seja, não havia como fugir do tic tac lento e voraz do círculo preso ao pulso. Mas que diabo, por que não paro de pensar na fome do tempo? Talvez pela simples palavra falada em público, “sucata”, com a intenção de revelar um segredo tenha me obrigado a enxergar o meu, tão risível quanto o do homem da fila. A diferença entre os dois era que jamais assumiria em uma fila seja lá de que fosse que sou um homem mal-humorado. No entanto, era só olhar em minha direção para sentir o peso da soberba. Não sei até quando, mas o que faz levantar-me de manhã é o ranger dos dentes ao esbarrar nas mesmas pessoas no caminho para o trabalho. Só de vê-las sei o que escondem nos olhos baços e costas curvadas. Enxergam mal, pensam torto, andam torto e fedem àquela hora do dia. Não faz tempo cheguei a dar um passo adiante para empurrar a velha com um terço na mão que passou por mim desfiando as contas e com a bolsa colada no peito. Recuei não por medo ou pena, mas pelo desprezo que senti de mim, covarde. Não fosse o mandamento que me acompanha até hoje “não matarás” empurrava não só a velha, mas toda aquela corja para quem eu rangia os dentes não escovados e que a chefe observava todos os dias com a mesma pergunta “já comprou a escova, Santos?” Com a os lábios serrados de ódio jamais respondi sem, contudo, deixar de pensar mil palavrões e desejar a pior das pragas para aquela que não se conformava enquanto não me levasse ao dentista para extrair todos os cacos da boca. Ela não sabia que há anos eu fizera um pacto com o tártaro e o fedor das axilas. Um dos motivos para a minha decisão foi ela, a chefe, com o seu cabelo pranchado e cheiro de extrato francês, por quem passei uma semana sem tomar banho nem mudar a roupa só para corromper o que os colegas chamavam de “bom-gosto”. Se eu não tinha mulher por causa disso? Este era o assunto predileto tratado entre os companheiros da repartição ao que eu, no meu silêncio arredio, ironizava: “ora, danem-se as mulheres. Elas também não têm o seu pacto? Ou será que desprezar homens estúpidos e com corrente de ouro no pescoço como vocês não é também um pacto?” Mas era fim de ano e o que me aborrecia não eram as mulheres que eu deixava de ter, porque fedia. Mas o pacto com a comédia, que todos insistiam renovar naquele último dia. Por que “Feliz Ano Novo” se de antemão sei o que me espera depois dos fogos de artifício? Ou será que não vou mais esbarrar na velha com o terço na mão e a bolsa agarrada ao peito? A repartição terá desaparecido? Mandaram para casa  a chefe com cheiro francês e verruga no dedo? Acordarei de manhã sem o gosto de ralo na boca? Não, isso não vai acontecer. Não que a traça não queira, ela até se esforça no trabalho sigiloso de comer os livros nunca lidos da estante, mas porque vou encontrar as mesmas pessoas no caminho de casa para o trabalho e elas vão de novo me encontrar na ida e também na volta e todos desejaremos a morte um do outro até de novo o novo ano chegar e o prefeito encomendar a festa e o teatro para o povo. Aliás, esse é um pacto ao qual renunciei, rasguei o papel, mastiguei, fiz uma bolinha e atirei na cabeça do homem que assistia às gargalhadas a peça Quando o asno virou homem, tragédia transformada em comédia para facilitar a compreensão da plateia. Antes que ele me visse, escondi-me debaixo da arquibancada sentindo-me um herói. O leitor pode até achar que sou infantil ou coisa parecida. Só que, como homem mal-humorado e nutrido na raiva, foi como dar um tiro de canhão.

Ana Barros
Natal, 01 de janeiro de 2015.

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