Este
ano o Auto de Natal foi substituído por Lamatown,
com encenação em vários pontos da cidade no período natalino. Fui ver o
espetáculo na Praça da Árvore do conjunto residencial Mirassol, em Natal, onde
permaneceu por três dias. O texto, adaptado de Um Inimigo do Povo (Ibsen,1882) por Clotilde Tavares, escritora
paraibana, é tão realista que pensamos estar diante da campanha política para
presidente da República de 2014. Pontilhado de ironia e cinismo tanto em
relação às autoridades quanto à sociedade em geral, o trabalho de Clotilde expressa
uma crítica velada ao governo do Partido dos Trabalhadores (PT). Há referências
indiretas ao programa social Bolsa Família, ao consumo dos empregados cuja
ascensão de classe estimulou e ainda estimula o ódio das elites, estas, em
completa promiscuidade com os beneficiados dos programas corruptos de Lamatown. Ou alguém não reconheceu a
presidente Dilma na personagem que representa o poder por trás de toda a
maquinação, de toda a corrupção em Lamatown?
O realismo da peça, que vale ressaltar a excelência técnica dos atores, o som
maravilhoso e o cenário minimalista e caótico, é puro niilismo de uma sociedade
decadente e a beira de um colapso, ou, quem sabe, de um golpe? Se em Ibsen há o
conflito entre o indivíduo e o coletivo, sugerindo uma moral de que homens e
mulheres podem mudar a História, em Lamatown
nos deparamos com a cumplicidade nefasta e vazia de ética entre povo,
governo e instituições. A Doutora, representada por Águeda Ferreira, corrompida
no passado e responsável pelas análises e laudos da lama, heroína do bem que
descobre toda a farsa, poderia ser o marco da transição para um mundo diferente.
Mas não é. A vida mesma, apesar da punição de todos pelas mãos da natureza, com
a verdade sobre a fraude da lama, que de cura não tem nada e sim, é lama podre
e que causa paralisia em quem nela mergulha, sobrevive sob o comando do ícone absoluto
que é o poder acima de bem e mal encarnado na figura da prefeita, presidenta,
rainha? É aqui que o espectador atento, à espera de uma catarse, é tomado pela sensação
de estranheza, pois o mundo da Internet e das redes sociais, no qual se informa
e forma, não é mais o mundo do realismo de Ibsen nem de Lamatown. Hoje ele, o
mundo, é hiper-real e trata não de um, mas de uma diversidade de poderes.
Aliás, o poder focado em Lamatown, Estado, Imprensa, segurança, justiça,
agoniza na superfície do mundo contemporâneo. Este, deslumbrado com as novas
mídias e tecnologia, faz a informação chegar a todos em tempo real, deixando
para trás quaisquer tentativas de cristalização do tempo e seus personagens. Mas
é ainda mergulhado no pesadelo kafkiano que o indivíduo busca uma arte revolucionária
e mágica, pois solidão e tédio continuam a atormentar apesar da impressão de
que se vive num eterno presente. Lamatow se dirige a esse homem líquido que
boia no tempo, no entanto, permanece amarrada a um poder corroído através dos
séculos sem dizer que ele, o poder,
está moribundo. Ao contrário, mostra em estado cru o que elege como real,
deixando a sensação de que já vimos o enredo milhares de vezes sem que ninguém nada
fizesse ou mudasse de lugar. Talvez em função do acesso universalizado à
Internet, com pretensões democráticas, muitos de nós consideremos que a
realidade é apenas o que vemos, curtimos ou não, e compartilhamos em blogs e Facebook.
Ledo engano. Como sempre, houve e haverá outras versões do real, acessíveis
àqueles poucos que dominam o
conhecimento. Em Lamatown a representante do sindicato das lavadeiras, o
estudante universitário e o presidente da Câmara de Vereadores são caricaturas
da banalização do real. Sem dúvida que essas categorias existem e são, em
muitos casos, cooptadas pelo poder. No entanto, essas mesmas representações da
sociedade, incluindo aí o Ministério Público, uma imensa quantidade de ONGs
responsáveis, a Imprensa independente dos blogs, trabalhadores públicos e
privados comprometidos com a vida, os milhares de artistas e profissionais
liberais que dão as costas ao sistema corrupto e passam a viver de sua arte ou
habilidades com responsabilidade e independência, desenvolvem já a longos
passos a política do mundo contemporâneo, que pode ser a ruptura com o real
cínico e niilista que Lamatown apresenta como verdade. Insistir na fórmula de que o mundo é um mar de lama é condenar o
espectador à eterna prisão da culpa, castigo e inércia. Lamatow insiste na
repetição angustiante do mesmo demônio invisível, que é o poder esmagador do
Estado sobre os indivíduos, impotentes, fracos e corrompidos. Mas, observando a
cena atual pós valores e comportamentos obsoletos, será que ainda continuamos
os mesmos de trinta anos atrás? Será que textos do século dezenove como
Um Inimigo do Povo e Lamatown, este apesar da redação atualizada, ainda causam
espanto e levam à ação? Ou será que em cima do monturo da História já não forjamos
nova e revolucionária ação? O tempo vai dizer... Se não já diz a ouvidos muito
sutis.
Ana
Barros
Natal,
07 de setembro de 2014.
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