Por
mais que tentasse entrar na onda de mau-humor encabeçada pelos “livres
pensadores” contra os jogos da Copa não fui capaz de vencer a minha natural
inclinação à frivolidade. Até a semana passada estava fria, sem entusiasmo nem
desejo algum para sequer comprar a camiseta amarela de Heitor. Mas eis que
passo no bairro do Alecrim e a luz da felicidade acende a chama do gozo
mundano que carece apenas de multidão e da aparência gritante de satisfação.
Paro na rua principal do grande aglomerado de lojas e camelôs disputando os
clientes no grito e deixo-me conduzir no êxtase verde-amarelo das vitrines e
fachadas dos prédios ornamentados para o espetáculo da Copa do Mundo. Sinto de
repente o coração bater acelerado e a emoção a me empurrar para o burburinho.
Por que eu deveria repelir aquele presente que, mesmo com todo o derrame
capitalista e descaramento dos políticos oportunistas em tirar proveito de cada
cena, me transportava para uma satisfação sensual com os populares que se
deixam levar, mais uma vez, pelo simbólico que inventa e reinventa a vida? Sim!
Afirmei olhando mais uma vez a grande loja chinesa com suas mercadorias
coloridas e ordinárias, as quais as mulheres disputavam com algazarra e indiferentes
às reflexões rabugentas de quem não suporta as pulsões do povo. Cheguei a ler
um artigo intitulado “O Fim da Cultura”, de Francisco Bosco, colunista de O
Globo, que começa dizendo: “o Brasil é um país onde o concreto sempre venceu o
abstrato. (...) somos frutos em larga medida de acontecimentos à revelia dos
projetos nacionais e oficiais”. E conclui: “Parece-me que o movimento
#nãovaitercopa# está relacionado a isso. O futebol é (ou foi) alta cultura
popular, mas a sociedade já não se identifica com suas possibilidades, que não
são as dela.” De qual sociedade o articulista falava? Da “bem pensante”,
raivosa e crédula na superioridade da razão sobre os instintos de povo que,
mesmo sob forte pressão dos argumentos de uma minoria ainda é quem fomenta
cultura e temas para os vários debates entre muros universais? Rodeada de censores de todos os lados e bombardeios de postagens reacionárias em minha página no
Facebook, busquei na memória algo que reforçasse ou aniquilasse o meu
entusiasmo verde-amarelo. Encontro fresca e poderosa a crítica de Nietzsche em
A Genealogia da Moral, que ironiza os sábios de sua época, não tão diferentes
dos nossos. Ele diz: “Vede na evolução de um povo as épocas em que predomina o
sábio; são as épocas de fadiga, de crepúsculo, de decadência, já não há energia
nem certeza de vida ou de futuro!” Aí não teve mais jeito. Desmascarada a farsa
da racionalidade elitista que assume Caetano Veloso, ao ser citado no texto de
Francisco Bosco, “O Brasil precisa merecer a bossa nova”, mandei aos diabos qualquer
resistência ao evento e deixei que meu corpo vibrasse com a ilusão que escorria
nas artérias do bairro popular. Nesse momento lembro ainda de outro sensualista,
Baudelaire, que, entre o amor e o ódio ao moderno das cidades e suas
perspectivas, entrega-se às reflexões e aos transportes do presente como
relação do artista com os fenômenos contingenciais. Baudelaire flanou na frivolidade do presente
do seu tempo tirando daí material para as suas crônicas que se tornariam
imortais justamente pela sua falta de escrúpulos com os modernos, contemplando
e se imiscuindo em tudo que pulsasse vida, ou que o desconcertasse com a falsa
beleza. Em “O Pintor da Vida Moderna” ele afirma: “mesmo nos séculos que nos parecem
mais monstruosos e insanos, o imortal apetite do belo sempre foi saciado”. Belo
no sentido empregado por outro francês, Stendhal, que entende a beleza como uma
promessa de felicidade. Pronto, era isso que havia percorrido o meu corpo: “apetite
do belo”. Pela enésima vez o povo
abusivamente chamado de alienado, estúpido, grotesco, imbecil, tolo, ignorante,
analfabeto, etc., etc., dava as coordenadas da festa. Da festa sem FIFA nem
instituições outras que o conduzisse para o lugar reservado a ele, ou seja, a
periferia da sociedade de consumo. Insistentemente ele ocupa os espaços conhecidamente
dele, não aqueles “espaços” para onde são empurrados ou expulsos, e participa a
seu modo. Tem um poema de “Flores do Mal”, “O Amor à Mentira”, quase duzentos
anos depois, ainda simboliza a realidade de qualquer centro urbano do mundo onde
coabitam povo e elite, esta, ainda tão elite quanto os burgueses
ridicularizados por Baudelaire e os sábios menosprezados por Nietzsche. O
Alecrim é apenas o presente que nos chama mais uma vez a querer a aparência.
O
AMOR À MENTIRA
Eu sei que há olhos cheios de melancolia,
Que nada escondem por debaixo de seus véus;
Belos escrínios, mas sem joias de valia,
Mais fundos e vazios do que vós, ó Céus!
Mas basta seres esta dádiva aparente
Para alegrar quem vive apenas da incerteza.
Que me importa se és tola ou se és indiferente?
Máscara, ornato, salve! Amo a tua beleza!
(Baudelaire)
Ana
Barros
Foto: Blog do Williams Rocha -100 do bairro do Alecrim - 2011
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