Talvez por uma
questão de segurança, facilidade na aceitação das idéias, cumplicidade de
afetos, ou por mera afirmação naquilo que acreditamos próprio dos anos que temos, ou ainda por pura pretensão e desinteresse pelo que é diferente, nós, os inquietos
outonais temos a tendência a escolher como parceiros de amizade, ou de amor, aquele cuja idade se aproxime da nossa.
É cômodo tagarelar na
presença de alguém em quem podemos projetar a nossa sombra. Sombra que nos
arremesse para um espelho espiritual. Outras vezes, o discurso performático de
nervos, de verbo, de gestos e nuances, deixa-nos cegos ao mundo em redor e de
olhos voltados para as próprias entranhas. O que aí conta é a exibição
estouvada de nossas vaidades. Nesse tipo de conversação em que esquecemos da
presença do outro, experimentamos um êxtase comparado ao sentido por
evangélicos fanáticos no auge do devaneio religioso. Somos tão autossuficientes
em nossos juízos de valor quanto um deus. Que mundo haveria além da inquietante
subjetividade que nos faz sentir acima dos demais? A objetividade, a atenção
para o mundo circundante ficam para mais tarde quando o tempo cuida de acalmar
a ansiedade, de fechar as asas cansadas. Em Seis
propostas para o próximo milênio, Ítalo Calvino fala belamente dessa
temporalidade invocando os mitos de Mercúrio, ou Hermes, deus alado da
comunicação e do princípio de individuação, e Vulcano, ou Hefaísto, “deus que
não vagueia no espaço mas que se entoca no fundo das crateras, fechado em sua
forja onde fabrica interminavelmente objetos de perfeito lavor em todos os
detalhes – joias e ornamentos para os deuses e as deusas, armas, escudos, redes
e armadilhas”. Num momento somos ágeis, alados e o mundo a extensão ególatra de
nossos voos. Noutro, possuídos pela consciência da morte e do gozo único sobre
a terra, podemos forjar na toca em que caímos com o nosso peso temporal, os
mais belos instantes de prazer do mundo translúcido.
Fôssemos menos
nervosos prestaríamos a atenção nos adolescentes e, particularmente, em algumas
mulheres que chegaram além dos sessenta e a nossa escolha preferencial por
companhias sofreria um abalo vertiginoso. Descobriríamos espantados a
quantidade de tempo em que estivemos ensimesmados, mesmo na aparente companhia
de outros, enquanto outras pessoas, na ponta inicial os adolescentes, e as
mulheres pós-sessenta no final da escala em que nos posicionamos ao meio, ou
não desenvolveram ainda um olhar inteiro (moral), ou já o cegaram de vez. Somos
pois o grau maior de uma tensão aniquiladora. Estamos agonicamente situados
entre o caos do princípio e a possibilidade da ordem, que é o fim.
O problema dessa
escolha arbitrária é a singularidade existencial das mulheres cuja realidade
privativa e subterrânea tomou um rumo diferente daquele conquistado pelos homens,
que é o espaço exterior, a vida objetiva. Déssemos trégua à ansiedade por seres
semelhantes a nós mesmos e apurássemos os sentidos na direção desses dois
grupos que tanta reprovação provoca nos espíritos sensatos e comedidos e a
promessa da felicidade seria então uma efetividade em nossos dias mais lúcidos
e produtivos e não um acaso do destino, fatalmente selado como ideal no fim da
jornada.
Os impulsos ainda
incondicionados do adolescente só diferem num aspecto da força
“desorganizadora” da mulher pós-sessenta. Aquele é um desbravador, um deus
rebelde e inconsequente que tudo pode, um sátiro dando cambalhotas num destino
que se prenuncia. A mulher pós-sessenta, pela imposição cultural de sua época,
obrigada a frear a fúria primordial na profissão ou no casamento, adormece os
impulsos para mais tarde, livre das gravidezes e dos filhos já adultos, lançar o
seu grito de liberdade. Distante da tagarelice maníaca dos adolescentes e cheia
de desprezo pela velhice adere a uma fina ironia, algumas vezes torna-se até
rabugenta e utiliza-se de um humor ácido e debochado para enfrentar resignada a
vida insípida ao lado dos filhos indiferentes e do marido maquinalmente
silencioso. É a anti-Medéia liberta das peias do pudor e das obrigações
conjugais. Mataria os filhos não por ciúme do marido infiel mas pelo retorno à
liberdade perdida. Emancipada das mamadeiras, das fraldas e de um sexo frio,
essa aniquiladora de valores seria agora bacante não fossem os anos de exaustão
física e mental consequentes de uma rotina diária de fadiga e repetição, o
preconceito em torno da velhice, a moral social e familiar diante do
comportamento dessa fêmea que se tornou mulher tardiamente.
Um tipo mulher
síntese do sabor e da sutileza doce-amargo do que é humano, ela experimentou toda
a sorte de derrotas, frustrações e êxtases místicos, intuitivos (menos
sexuais), sem contudo manter grande intimidade com o espaço lá fora. É dentro
da própria casa, em contato com os filhos e o marido, que adquire vícios,
aprende a manipular os sentimentos e incorpora ao longo do tempo uma personagem
em desacordo com a que vinha desempenhando como mãe e esposa. É no devaneio que
essa deusa, cínica e erotizada, lúcida de sua derrota, dá um soco na pudicícia
paralisante da família e, mesmo confinada entre quatro paredes, agride a
vergonha daqueles que a queriam deserotizada por ser “uma senhora”.
É comovente a ânsia
de viver dessa que sabe já ter consumado uma enorme quantidade de vida.
Sobra-lhe pouco tempo... Descobre-se real, um em si capaz de amar e ouvir os apelos carnais do mundo. Perdeu a moral e o respeito que a alimentaram até então. Não tem mais drama interior.
Mas o físico dessa
heroína da despedida não está em harmonia com o intelecto. Precisa agora de
artifícios para sobreviver como bengala para as pernas reumáticas, óculos para
a vista cansada, prioridade em filas de banco e supermercado, pois é idosa, etc., etc. No entanto, nuca
esteve tão lúcida, apesar de ninguém na família dar atenção às suas conversas
nem valorizar o seu saber. Ela lê desolada nos olhos de todos uma mistura de
raiva e intolerância pela inutilidade a qual se transformou. Não vê saída senão
resignar-se ou fingir.
Adolescentes e pós-sessenta
são dois extremos de uma felicidade sem regras. Em ambos, a fruição natural
desse estágio psicológico é sufocado primeiro pelos pais, aliados do Estado e
das instituições em geral, detentores de poderes soberanos sobre a vida e a educação
de homens e mulheres. No segundo momento, pelos filhos que, já adultos,
profissionais e sem tempo para perder com conversas ociosas, fazem vista grossa
à pessoa que ronda no entorno da casa
como um espectro que todos esperam ansiosos a hora de sumir de vez.
Não fosse a
invisibilidade em que é transformada, os filhos compreenderiam a dramaticidade
e mesmo certa dose de humor denunciados nos gestos da mulher que são o resumo
simbólico da saga familiar. Simbólico que é de todos e de cada um daqueles que
são impotentes para desfazer a malha conflituosa cristalizada numa única
pessoa, a mãe, que se joga involuntariamente sem mais nenhuma chance de
interferência no mundo, com a sua ironia estéril, com o seu distanciamento
teatral da mesmice cotidiana em que viveu até se dá conta de si mesma. Em seu devaneio somente ela no reduto doméstico
consegue rir de si e dos outros numa aura de lucidez disfarçada na insensatez.
Por que perdermos tempo falando e ouvindo a voz lamurienta da moral quando
deveríamos atentar para a grandeza dessa Circe contemporânea que, do alto de
sua magia, transforma todos ao seu redor em porcos, ou para a
irresponsabilidade juvenil? Não existe resposta, pois as viagens são
empreendidas de forma nebulosa no labirinto que não permite ao viajante enxergar
o ponto de chegada.
Ana Barros