Tantas vezes ido e vindo até chegar em mim
Anfitriã do que é de todos e de ninguém: o presente
Nele não posso ficar...
A roda gira e joga para trás...
A roda gira e ressurge à frente...
Cenas...
O mundo novo de novo é
...........................Tempo.............................
Ana Barros
segunda-feira, 21 de março de 2011
quinta-feira, 17 de março de 2011
Cheiro de seiva de alfazema
Objetos não morrem
O capacho à porta do banheiro
Não sabe o tempo que o esfrega e molha
Os utensílios da cozinha
Ordenados em tábuas suspensas acima do fogão esperam
As mãos que tocam os primeiros acordes:
Pedro dorme feliz ouvindo a mãe pisar o alho
E as latas de leite vazias enferrujaram na mesa gasta
Aroma das folhas mortas do jasmim e do Segundo Sexo de Beauvoir
Entre as teorias também mortas de Beth Friedman e Muraro
Acende a luz no canto escuro da estante junto à roupa rosa desbotada
Costurada na máquina de pedal Mercswiss decorando
A sala
À tarde as sombras provocadas pelos fungos suspensos
No muro de tijolo avermelhado
E as imagens surreais das telhas mofadas
Trazem lagartixas preguiçosos que passeiam lânguidas pelas frinchas
Mais uma vez abre a mala de madeira vinda de casa
E o cheiro de Seiva de Alfazema é carnaval fantasia papangu
Infância sem guarda
Ana Barros
O capacho à porta do banheiro
Não sabe o tempo que o esfrega e molha
Os utensílios da cozinha
Ordenados em tábuas suspensas acima do fogão esperam
As mãos que tocam os primeiros acordes:
Pedro dorme feliz ouvindo a mãe pisar o alho
E as latas de leite vazias enferrujaram na mesa gasta
Aroma das folhas mortas do jasmim e do Segundo Sexo de Beauvoir
Entre as teorias também mortas de Beth Friedman e Muraro
Acende a luz no canto escuro da estante junto à roupa rosa desbotada
Costurada na máquina de pedal Mercswiss decorando
A sala
À tarde as sombras provocadas pelos fungos suspensos
No muro de tijolo avermelhado
E as imagens surreais das telhas mofadas
Trazem lagartixas preguiçosos que passeiam lânguidas pelas frinchas
Mais uma vez abre a mala de madeira vinda de casa
E o cheiro de Seiva de Alfazema é carnaval fantasia papangu
Infância sem guarda
Ana Barros
sábado, 12 de março de 2011
Retrato da morte
Eternamente cheio. Enfermarias coletivas. Pacientes nos corredores sobre macas: o Hospital público é humano. Os quartos jamais ficam vazios nem de portas fechadas. Façamos uma visita num dia qualquer da semana e perceberemos a falta de privacidade dos enfermos. Caminhando pelos corredores vamos dar com a vergonha e a intimidade alheias arbitrariamente expostas a quem quiser ver. Criaturas pálidas, esquálidas, quase nuas pela funcionalidade ridícula das batas ou pela completa falta de roupas e de atenção dos familiares e dos funcionários, olhos profundos e resignados pela dor, dóceis aos afagos de quem os percebem: um espetáculo da dor do outro. Dentro do Hospital público todos são obrigados a abrir mão da vergonha e da vontade de poder: obedecem.
O Hospital privado é diferente? Em termos. Há neste, devido à ostentação de padrão de consumo elevado, ou da cultura do medo da morte, junto à falência da saúde pública, que força a classe média comprometer boa parte de sua renda com plano de saúde, um certo recolhimento do paciente. O quarto, não! apartamento, é individual, limpo e asseado. Apenas amigos mais próximos e familiares entram nele. Para o doente, conforto e minimização dos sofrimentos e constrangimento que acarreta o momento. A porta se fecha. Esconde-se o sofrimento atrás das paredes, debaixo dos lençóis e sob analgésicos poderosos. A mística da compaixão coletiva, quando se trata de pessoa pública, tende a aproximar esse tipo de enfermo à imagem do santo. Distanciado de todos e cobertas as feridas, ele padece, ou convalesce, longe de olhares mórbidos e curiosos, cuja repulsa do que é humano exige a morte como troféu, pois sua condição (do enfermo) pequena foi aberta ao mundo e este não suporta fraqueza, arranca tudo o que deu de graça: força, viço, juventude, poder. Deixa para trás apenas ossos e uma precária consciência não importa se pobre ou rico.
Mas o pior é quando o enfermo é anônimo no Hospital público. Sozinho, doente e indigente. Recorremos demasiado ao termo indigente sem nos dar conta de sua perversa significação. Indigente não seria... não gente? O doente está lá, estirado ou encolhido no leito, em silêncio absoluto. Sofre. Fala com o invisível, ninguém o socorre, nem pode. Num estágio já avançado da doença esquece... Entrega-se. Falam apenas dois olhos sem mais vestígios de esperança. Mas o olhar do enfermo do Hospital público, talvez por ser público, é pesado de redenção, se faz gente. E o que é feio, hediondo ao nosso juízo de valor, na contemplação desse doente se transforma em essência de nós mesmos, ou beleza que se confunde com a morte. Não sabemos aí o limite entre as duas, beleza e morte, uma vez que conhecemos a ambas; uma vez que estamos, depois de contemplar a miséria do outro, plenos de nada, ou de nós mesmos?
Ana Barros
O Hospital privado é diferente? Em termos. Há neste, devido à ostentação de padrão de consumo elevado, ou da cultura do medo da morte, junto à falência da saúde pública, que força a classe média comprometer boa parte de sua renda com plano de saúde, um certo recolhimento do paciente. O quarto, não! apartamento, é individual, limpo e asseado. Apenas amigos mais próximos e familiares entram nele. Para o doente, conforto e minimização dos sofrimentos e constrangimento que acarreta o momento. A porta se fecha. Esconde-se o sofrimento atrás das paredes, debaixo dos lençóis e sob analgésicos poderosos. A mística da compaixão coletiva, quando se trata de pessoa pública, tende a aproximar esse tipo de enfermo à imagem do santo. Distanciado de todos e cobertas as feridas, ele padece, ou convalesce, longe de olhares mórbidos e curiosos, cuja repulsa do que é humano exige a morte como troféu, pois sua condição (do enfermo) pequena foi aberta ao mundo e este não suporta fraqueza, arranca tudo o que deu de graça: força, viço, juventude, poder. Deixa para trás apenas ossos e uma precária consciência não importa se pobre ou rico.
Mas o pior é quando o enfermo é anônimo no Hospital público. Sozinho, doente e indigente. Recorremos demasiado ao termo indigente sem nos dar conta de sua perversa significação. Indigente não seria... não gente? O doente está lá, estirado ou encolhido no leito, em silêncio absoluto. Sofre. Fala com o invisível, ninguém o socorre, nem pode. Num estágio já avançado da doença esquece... Entrega-se. Falam apenas dois olhos sem mais vestígios de esperança. Mas o olhar do enfermo do Hospital público, talvez por ser público, é pesado de redenção, se faz gente. E o que é feio, hediondo ao nosso juízo de valor, na contemplação desse doente se transforma em essência de nós mesmos, ou beleza que se confunde com a morte. Não sabemos aí o limite entre as duas, beleza e morte, uma vez que conhecemos a ambas; uma vez que estamos, depois de contemplar a miséria do outro, plenos de nada, ou de nós mesmos?
Ana Barros
quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011
A cidade e a poeta
A cidade acorda. Passos. Carros. Ruídos. Sol. Tudo se junta num abraço infernal. Queimam os olhos do passante que busca um lugar ameno e sombreado. Tudo fere e se desmancha no fluxo da passagem. Correm. Todos correm. Carros, gentes. Correm e desaparecem... reaparecem e correm na sofreguidão dos segundos que também correm. Trabalhadores, mendigos, loucos, vadios, putas... correm. Viciados de toda ordem perambulam ou se escondem nas ruas dissimuladas e generosas. O passante fecha os olhos, amarga-lhe o fel que oprime a garganta e pensa: “ninguém se suja no mar de lama em que se afoga”. Engole o trago. O sinal abre. Correm, correm, correm todos. Tudo. E de novo reaparecem irmanados, velhos móbiles. O passante para. A fumaça do cano do ônibus entra-lhe nos poros. Gritos de alguém oferecendo felicidade à varejo: padres, evangélicos, sem-teto, ambulantes, políticos, demagogos, todos gritam. Pessoas passam – indiferença.
Mas lá está ela sentada na calçada do prédio antigo e sujo. Prefere locais encardidos e abandonados, como ela. Está sempre lá, debaixo do viaduto, onde o esgoto escorre rio adentro; nas paradas de ônibus, local ideal para acomodar os misteriosos sacos, cheios e sujos ninguém sabe de quê. Mas tem papel e lápis. Cruza as pernas esquálidas e imundas. O rosto, maquiado com crostas de sujeira, assume aspecto nobre de quem sonda o incomensurável.
Poeta, artista... deusa? Segura o toco do lápis com peso metafísico: olha além... Desenha, escreve, rabisca. Folhas e mais folhas vão se amontoando entre os farrapos e o lixo que, presume-se, carrega naqueles volumes. Sempre só e majestosa. Convive com a canalha. Dorme em becos promíscuos e mau-cheirosos. Mas está sempre só no seu mutismo e delírio. Ausente... Ela é indiferente à cidade que borbulha na espuma do nojo. É invisível. Desliza na multidão que ignora, ela, que também ignora.
Ana Barros
Natal, 09/08/99
Mas lá está ela sentada na calçada do prédio antigo e sujo. Prefere locais encardidos e abandonados, como ela. Está sempre lá, debaixo do viaduto, onde o esgoto escorre rio adentro; nas paradas de ônibus, local ideal para acomodar os misteriosos sacos, cheios e sujos ninguém sabe de quê. Mas tem papel e lápis. Cruza as pernas esquálidas e imundas. O rosto, maquiado com crostas de sujeira, assume aspecto nobre de quem sonda o incomensurável.
Poeta, artista... deusa? Segura o toco do lápis com peso metafísico: olha além... Desenha, escreve, rabisca. Folhas e mais folhas vão se amontoando entre os farrapos e o lixo que, presume-se, carrega naqueles volumes. Sempre só e majestosa. Convive com a canalha. Dorme em becos promíscuos e mau-cheirosos. Mas está sempre só no seu mutismo e delírio. Ausente... Ela é indiferente à cidade que borbulha na espuma do nojo. É invisível. Desliza na multidão que ignora, ela, que também ignora.
Ana Barros
Natal, 09/08/99
sábado, 12 de fevereiro de 2011
Vaidade
Assistia à novela quando
o artista famoso exibiu a glória do ouro
no pescoço nos anéis e nas lindas roupas do Shopping
Me lembrei do buraco
no calcanhar da sua meia branca e suja de um mês
(Sem que soubesse vi e fingi não ver
os fiapos a necrosar o pobre acessório)
Considerei “É do poeta rasgar as vestes e abrir as veias” As suas
tinham tantas fissuras que a camisa de brim azul
balançava ao vento
Mas hoje vi de novo o buraco no calcanhar
da sua meia branca e suja de um mês e você viu que eu vi
e fez o buraco maior
Ana Barros
o artista famoso exibiu a glória do ouro
no pescoço nos anéis e nas lindas roupas do Shopping
Me lembrei do buraco
no calcanhar da sua meia branca e suja de um mês
(Sem que soubesse vi e fingi não ver
os fiapos a necrosar o pobre acessório)
Considerei “É do poeta rasgar as vestes e abrir as veias” As suas
tinham tantas fissuras que a camisa de brim azul
balançava ao vento
Mas hoje vi de novo o buraco no calcanhar
da sua meia branca e suja de um mês e você viu que eu vi
e fez o buraco maior
Ana Barros
Últimas sensações de um ateu
“Um sopro
Só
E logo entrarei no Vazio...
Mas enquanto durar
Estou Aqui
Descubro que sinto
Do jeito de ontem
E a foto ao lado zomba de mim
Entretanto, deixou de ser:
Vivo fora do tempo sem Tempo do retrato
Já não falo
Nem ando nem como com as minhas mãos
Deixei de trepar
Mas um sopro
É Tudo
Alguns vieram me ver e lamentam
O que não faz parte de mim
Ah se eu pudesse jogar pra fora este pó...
Mas a boca amolece
E eu esqueço...”
Ana Barros
Só
E logo entrarei no Vazio...
Mas enquanto durar
Estou Aqui
Descubro que sinto
Do jeito de ontem
E a foto ao lado zomba de mim
Entretanto, deixou de ser:
Vivo fora do tempo sem Tempo do retrato
Já não falo
Nem ando nem como com as minhas mãos
Deixei de trepar
Mas um sopro
É Tudo
Alguns vieram me ver e lamentam
O que não faz parte de mim
Ah se eu pudesse jogar pra fora este pó...
Mas a boca amolece
E eu esqueço...”
Ana Barros
domingo, 6 de fevereiro de 2011
Santa Rita: a porta do céu*
Santa Rita: por quê? Pelo distanciamento, pela leveza diante do desconhecido, por ser lugar onde as pegadas e a voz do homem se desmancham com as pedras e as ondas. “Mas existe tal praia”? Ora, se não existisse inventaria com a força da imaginação que vem em momentos de tensão e nos leva ao delírio e aí esquecemos as horas, tocamos pessoas, coisas, pedaços de mundo com a fantasia que se eleva acima do que vive.
Santa Rita entrou em minha vida como um desses objetos que a gente faz questão de conhecer só pelo prazer de descobrir paraíso. Santa Rita seduz pela aura de inocência, melancolia e malícia. Quanto êxtase experimentei ao descer do ônibus às dezoito horas e caminhar lentamente pela faixa estreita de praia que se bifurca com pedras escuras, areia e vegetação selvagem. Instante mágico em que o homem se despede da ação do dia e mergulha na quietude da sombra, sombra que coloca a dúvida sobre a certeza da solidez do mundo ao penetrar sorrateira morros, telhados e consciências.
Sempre procurei chegar em Santa Rita às seis da tarde, hora do recolhimento do que vive, até mesmo do mar que recua dócil em seu leito, de onde podemos ouvir o suave respirar de seu sono. Sublime silêncio: harmonia dos elementos. Pude sentir diante daquelas pedras negras e daquele mar que se cala uma profunda sensação de acolhimento. Durante muito tempo fui a Senta Rita como quem vai ao templo a procura de Deus. Mas lá também encontrei o Diabo, um labirinto aonde pude caminhar, me esconder e adivinhar o feio que ali se deixa arrastar pela inclemência do sol e a indolência das ondas.
Vi de Santa Rita os últimos raios de sol que pincelavam o céu de Genipabu, a coloração avermelhada do oceano que se arrasta cansado nas areias mornas e desertas ou, olhando para o nascente, saboreei a doçura tristonha das ruínas do casarão que é derrubado pela fúria do mar junto ao abandono à ferrugem e ao tempo do fusca de Marcelus Bob e das esculturas efêmeras de Guaraci Gabriel.*
Quando a noite cai em Santa Rita parecemos anoitecer com as pedras e o mundo. Deixamos de existir e já não temos peso algum: o tempo nos esquece, a escuridão nos engole, podemos ver sem os olhos, somos olfato, poros, algo escondido cochicha, sussurra. Há algo que não podemos aprisionar.
Nasce o dia em Santa Rita... e nada sobrevive do sono a não ser o corpo que salta de novo no mundo. Agora é burburinho, areia quente. E quantas vezes o sol vai voltar pra esconder o indizível ao rasgar o céu já sem bruma, expor os corpos, as carcaças, os odores, as dores, os vícios e os gemidos que só o dia desperto escancara e transforma em espetáculo.
Ana Barros
Natal, 13 de janeiro de 1999.
*Porta do Céu foi o tema da megaexposição promovida em Santa Rita, em 1999, por Guaraci Gabriel. Dela fizeram parte vários artistas, da praia e de Natal. Foi um mês inteiro de festa dionisíaca.
Santa Rita entrou em minha vida como um desses objetos que a gente faz questão de conhecer só pelo prazer de descobrir paraíso. Santa Rita seduz pela aura de inocência, melancolia e malícia. Quanto êxtase experimentei ao descer do ônibus às dezoito horas e caminhar lentamente pela faixa estreita de praia que se bifurca com pedras escuras, areia e vegetação selvagem. Instante mágico em que o homem se despede da ação do dia e mergulha na quietude da sombra, sombra que coloca a dúvida sobre a certeza da solidez do mundo ao penetrar sorrateira morros, telhados e consciências.
Sempre procurei chegar em Santa Rita às seis da tarde, hora do recolhimento do que vive, até mesmo do mar que recua dócil em seu leito, de onde podemos ouvir o suave respirar de seu sono. Sublime silêncio: harmonia dos elementos. Pude sentir diante daquelas pedras negras e daquele mar que se cala uma profunda sensação de acolhimento. Durante muito tempo fui a Senta Rita como quem vai ao templo a procura de Deus. Mas lá também encontrei o Diabo, um labirinto aonde pude caminhar, me esconder e adivinhar o feio que ali se deixa arrastar pela inclemência do sol e a indolência das ondas.
Vi de Santa Rita os últimos raios de sol que pincelavam o céu de Genipabu, a coloração avermelhada do oceano que se arrasta cansado nas areias mornas e desertas ou, olhando para o nascente, saboreei a doçura tristonha das ruínas do casarão que é derrubado pela fúria do mar junto ao abandono à ferrugem e ao tempo do fusca de Marcelus Bob e das esculturas efêmeras de Guaraci Gabriel.*
Quando a noite cai em Santa Rita parecemos anoitecer com as pedras e o mundo. Deixamos de existir e já não temos peso algum: o tempo nos esquece, a escuridão nos engole, podemos ver sem os olhos, somos olfato, poros, algo escondido cochicha, sussurra. Há algo que não podemos aprisionar.
Nasce o dia em Santa Rita... e nada sobrevive do sono a não ser o corpo que salta de novo no mundo. Agora é burburinho, areia quente. E quantas vezes o sol vai voltar pra esconder o indizível ao rasgar o céu já sem bruma, expor os corpos, as carcaças, os odores, as dores, os vícios e os gemidos que só o dia desperto escancara e transforma em espetáculo.
Ana Barros
Natal, 13 de janeiro de 1999.
*Porta do Céu foi o tema da megaexposição promovida em Santa Rita, em 1999, por Guaraci Gabriel. Dela fizeram parte vários artistas, da praia e de Natal. Foi um mês inteiro de festa dionisíaca.
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