Poucos são os que conhecem em
si, e no outro – a distinção. Desde
criança dizem para o que viemos e que
intuição é coisa de animal. E de fato é. Esquecem que somos – natureza verde. Inventam
mil facetas com o propósito de impor um mundo satisfeito e em paz. Porém surge daí
o conflito entre quem manda e quem não
obedece por intuir desde cedo que a mentira vem logo após o gozo. Estes são os diferentes, os rejeitados
por afirmar desejos do corpo que deseja, do corpo que não congela de medo. A
presença sem rosto das redes sociais é hoje a máquina dos moralistas de sempre.
Dos senhores de trânsito livre entre família, estado, religião e capital. Mas,
já que a vida real dos insurgentes jamais foi vista na TV, tampouco é hoje
compartilhada em redes sociais, será que não há outro poder nas bordas desse mundo construído no medo e aceitação?
Difícil entender um progresso
em que tudo se sabe da razão e suas complexidades e nada dos sentidos de
mulheres e homens. Tudo acessível. Tudo ao alcance da mão. A um clique temos a posse do mundo. A outro clique tudo pode virar pó e zerar a
nossa condição de humanos. Porém esse novo
mundo é estranho à memória de um saber ativo, silencioso e presente em sentidos
que não se esgarçam: temos experiências que afirmam a força que aniquila o eu imposto. O cinema é rico de enredos
nessa direção: Estamira é uma vontade
que não se deixa capturar. A esquizoanálise
de Deleuze e Guatarri também quer o singular. Aqui falo de uma potência menos complexa que Estamira e que até hoje conhece quase
nada da particularidade do processo criativo dos dois filósofos: a geração,
particularmente nordestina, de 1960. Esta é possivelmente a última de um ciclo agrário
ultrapassado por novas tecnologias, êxodo rural e tendências urbanas. Não
obstante, é de gerações pretensamente mortas que ressurgem valores perenes na necessidade
compulsiva de devir.
Lembro de como meus pais,
que eram iguais a tantos pais da década, acompanhavam os cinco filhos. Aliás,
eles não “acompanhavam”. Apenas cobravam de nós, medrosos e obedientes,
respeito incontestável e obrigações no trabalho do campo. Fingiam desatenção em
relação às nossas traquinagens, no entanto, sentíamos a presença deles mesmo em
sonhos: é impossível silenciar a voz de pai e mãe. Mesmo depois de mortos eles ressurgem
ora com sentenças terríveis, ora com a amargura de sofredor a carregar o fardo
do mundo. E nós, filhos dessa época binária e monogâmica, sabíamos por intuição
o peso carregado por duas pessoas unidas à força de arranjos estranhos à vida. Daí
a origem dos desarranjos
inevitáveis...
Atualmente há síndromes de tudo para justificar, e
curar, outros desarranjos, estes, reações
que brotam do medo de quem vive na cidade grande. No caso particular dessa
última geração verde, o medo
impulsionou rupturas, corrida ao desconhecido sutilmente escondido por pais raivosos
(aqui lembro a análise do filósofo Cláudio Ulpiano de Carta ao Pai, que diz ser impossível Kafka amar Hermann devido este
ser um ser apaixonado), ignorantes, utilitários
da mão de obra disponível dentro de casa ou pela rejeição a homens modernos que, supostamente, roubariam
suas terras e mulheres. A proteção excessiva do pai sobre as meninas e as adolescentes,
vale ressaltar que moça acima de dezessete anos era considerada um estorvo por
não arranjar marido e, consequentemente, ser uma boca a mais, representava não
só a moral pragmática do homem pai de família, bem como ciúme do verdor das
fêmeas. Porém, rompendo o cerco, muitas
fugiram para longe. Desertaram para o temido mundo das possibilidades. Não
podemos deixar de pensar em Macabéa, cujo mergulho no caos não lhe deu
perspectivas longe da terra abandonada.
Crescíamos sem pressa... Cegos
para além da roça de milho. Jamais um anseio com o futuro. Importava a barriga
cheia, viver sob a segurança de nossos pais e a ausência de almas. Sim, o
terror era de almas – seriam os fantasmas
de Baudelaire?* – aparecerem na escuridão do mundo apagado com a chama da
lamparina. Nunca um sermão pelas pequenas falhas como notas baixas na escola,
repetição de ano. Estas faziam parte do ritual do trabalho na lavoura que,
chegado o inverno, as aulas eram deixadas de lado, e, se havia revolta de algum
atrevido, morria no ódio reprimido. Lúcidos
de uma educação autoritária e da herança de algo
que não seca como as palhas do milho, assim chegaram alguns na cidade grande.
Havia o eterno no casamento indissolúvel,
na casa de tijolos sólida, na mobília que atravessava gerações, nos utensílios
de ferro, nos homens que pensavam enganar a morte com trabalho e dinheiro. Nas
mulheres que rezavam com a fé inabalável das santas... Mas foram apenas costumes
substituídos por outros que surgiram com os atores do momento. No entanto,
havia, e há, o eterno para além da correnteza que engoliu a certeza: o eterno na
derrota finita do olhar moribundo do meu avô em torno dos bens cuidadosamente
acumulados e, logo após sua morte, divididos com a pressa adormecida até então
nas colheitas silenciosas, o eterno do crepúsculo triste na volta para casa de
meu pai cansado, o eterno nas orações e histórias contadas por nossa mãe antes
de dormir, o eterno na angústia do suicídio de minha avó paterna...
Filhos e netos de sessentões,
digitais num presente que escorre da tela, alheios a terra e bichos, mergulham agora
no fluxo do tempo. Mas, e os pés de milho viçosos, o que foi feito da colheita
e suas sementes? Desapareceram na ferrugem de silos velhos? Viraram pó nas
garras de jovens gorgulhos? Ou escorreram na correnteza de mulheres e homens
sem tempo?
Ana Barros
Natal, 27/04/2001 (concluído
em 24 de dezembro de 2020).
* “O passado, conservado o sabor do fantasma, recuperará a luz e o
movimento da vida, e se tornará
presente.” Sobre a Modernidade – Baudelaire
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