sexta-feira, 22 de junho de 2018

Meia noite









Instante após instante
É cerração
Que fazer na ausência da surpresa que hidrata a sede de pequenas ilusões
A ilusão morreu da velhice que nutre o gosto
Coube a mim
(vazia)
Decidir o que comer fora do silêncio instalado no palco luz e movimento
Há uma cota de evasão no tempo que joga dado
E todos os jogos foram jogados de forma a evitar noite fria
Eu vi o jogo jogado
Ali diante de meus olhos claros
Não mais fogo fátuo Não mais cristal trincado
Todos estão trincados
E inteiros
É meia noite
Luz minguada do mundo

Ana Barros
Natal, 20 de junho de 2018.



segunda-feira, 18 de junho de 2018

Preto


Finalmente havia chegado a hora de martelar Verdade: pá pá pá pá... Quebrei miudinho tudo. Nada poupei.  Separei e colei os pedaços dos quais não podia abrir mão por ser a minha Fênix e joguei fora o que considerei imprestável, fosse porque havia apodrecido, fosse pelo desespero ao qual sou empurrado quando entendo emendar o que não pede remendo. Porém, ao dar meia volta em direção à rua fui tomado pela má fé dos frustrados que, apesar de derrotas em série, apelam com certa dose de “enquanto há vida há esperança” e voltei à lixeira pegando de volta o caco de Romântico. Limpei o cacareco das escaras e deixei-o em cima da escrivaninha. Analisaria mais tarde possíveis metamorfoses pelas quais o tempo o havia poupado da morte e do lixo do qual fora resgatado ainda com vida. É certo que não mais a vida azul e rosa com a qual o mundo foi vestido enquanto hetero e romântico. Vi maravilhado o arco-íris Senhor da multiplicidade de tons sobre aquele pequeno fragmento retornado dos escombros. Ali havia um mundo de coisas e aproximações possíveis, um mundo que celebrava qualquer ritual de promessa de felicidade.

Contente da minha ação abri o caco de Romântico e simpatizei de imediato com os corações que entraram na correnteza das sete cores. Apanhei cada um deles e vi que a ilusão responsável por criações felizes estava à beira da morte, fosse por que usada demais, fosse por que tinha que dar o lugar à outra que acabava de nascer sob o signo do arco que, na infância, meus irmãos e eu tentamos ultrapassar. Minha tia dizia que quem passasse debaixo do arco-íris se fosse homem virava mulher e, se fosse mulher, virava homem: “É impossível alguém passar o arco-íris”, disse para nosso desencanto o professor de ciências aproveitando a deixa para saber se algum de nós desejava ser outro. Ficamos em silêncio e encolhidos. No entanto, ali, diante do pedacinho de Romântico resgatado, vi que o professor não estava com a razão ao afirmar que nunca, por mais que corrêssemos, atravessaríamos o arco-íris. Descobri que podíamos, sim, ser outro ao banhar nas cores do arco do céu. Só que, para isso, se fazia necessário destruir Verdade. E foi no ato de martelar o que desbotava de velho que conheci Antonieta, Zulmira, D. Mercês, Help, Joaquim e Olímpia. Seis coroas cujo destino era tão somente a travessia do arco-íris.
I
Antonieta passa de sessenta cinco. Divorciada e com uma boa renda, separa todo mês dois mil reais para as despesas semanais no Violão de Prata. Paga as entradas, bebidas e o aluguel do dançarino. Antonieta tem um dançarino só seu. O dinheiro de aposentada é para comer e dançar, “duas prioridades de velha”, diz satisfeita. Antonieta não abre mão da sexta-feira no clube, coladinha em seu rapaz alugado. Porém, a alegria completa-se ali mesmo, no salão. Consome-se no contato suado com o dançarino cheiroso a Lancaster, perfume da juventude boêmia de Antonieta mandado buscar na Argentina para aquelas noites de tango e gafieira. O rapaz de quase trinta anos, de seios e quadris de moça, tem invariavelmente as calças pretas e coladas à pele. O volume eleva-se sob o zíper parecendo algo postiço colocado ali com o propósito de atiçar a libido da velha dançarina. Mas isso faz parte do jogo e Antonieta conhece bem o jogo. A noite chega ao fim. O dançarino se despede da senhora exausta e plena. Ela chama o táxi.
II
Zulmira não casou. Não por falta de noivos, mas por não encontrar nestes atrativos. Todos tinham algum defeito – usava prótese ou faltava um dente, não tomava banho, fedia a queijo velho, tinha só uma muda de roupas, pobretão, andava a pé, etc., etc. –, logo a moça cuidava de dar o fora no infeliz. Fez isso durante a longa existência dos pais, que desejavam ver a filha casada. Mas agora, com a morte dos dois e livre para escolher não casar, ela chegara aos setenta completamente esquecida dos inúmeros pretendentes que ensaiaram colocar uma aliança em seu dedo. Mesmo decidida a não alimentar ilusões matrimoniais, Zulmira não abre mão de pedir uma ajudinha a Santo Antônio quando chega o dia da entidade. É sempre a primeira a subir no ônibus lotado de solteironas tagarelas misturadas a romeiros taciturnos rumo à festa do santo casamenteiro na cidade cearense de Barbalha. O único objetivo de todos na viagem é tocar o pau do santo, tora de madeira gigante trazida da mata por homens robustos para o deleite da multidão. Dizem que, além de curar as enfermidades dos pagadores de promessa – velhos, velhas e crianças vestidos de batina marrom com um cordão amarrado à cintura –, Santo Antônio também faz aparecer marido para as solteiras. A algazarra entre casamenteiras deixa os devotos corados de vergonha. Eles ocupam um lado do carro, elas o outro.  Não se tem notícia de que alguma entre elas vá à festa agradecer o marido arranjado. Gargalhadas estridentes, piadas picantes, muito fumo, um gole aqui outro acolá de cachaça, um beliscão na bunda de Nazaré, solteirona que viaja de jaqueta e bermudão jeans e que devolve o atrevimento da companheira de viagem, vale lembrar que ambas se conheceram dentro do ônibus, com outro beliscão, dessa vez na boceta de Zulmira, o que a faz gargalhar ainda mais alto. Zulmira é a mais velha e a que mais viajou na estrada que leva ao santo e às brincadeiras que se repetem todos os anos com uma das novatas do passeio. Graças àquelas viagens ela voltava saciada e feliz. Traz algumas lascas nas unhas e a certeza de que Santo Antônio, mais uma vez, lhe deu uma mãozinha. O ônibus para na porta de Zulmira. Nazaré desce com a mala das duas.
III
Mas nem só de dança, aluguel de dançarino e turismo profano vivem aquelas que resolveram entrar no moinho hedonista cujas novidades brotam como as miniaturas de corujas que entopem a estante de D. Mercês. Já são mais de quinhentas de todos os tipos e lugar. Sessentona e viúva sem filhos, ela mora no pequeno apartamento de um quarto. Resolveu que era tempo de aposentar vassouras e excessos, menos da coleção de corujas e do prazer de jogar. Os dias haviam encolhido e a intenção era estendê-los o máximo até onde o carteado fosse quem desse as cartas. D. Mercês é a quarta de um grupo de amigas, todas com idade aproximada e cheias da vontade de entrar noite adentro de sexta-feira. Pela aproximação do apartamento da casa noturna, vão todas de carona com D. Mercês. Na volta, aproveitam para tomar alguns drinques na varanda da amiga e ali mesmo dormirem sobre colchões macios cuidadosamente acomodados para o momento.
O lugar é o de sempre: Cassino Copas e Paus. Elas vestem roupas da moda, usam joias e perfumes caros. O uísque e o cigarro ficam por conta do garçom Libório, que faz algum tempo serve as clientes com as marcas exigidas pelo bom gosto das quatro mulheres. Em meio à fumaça, cheiro de bebidas e suor perfumado de homens e mulheres bem cuidados, gritinhos agudos, mão peluda tocando mão peluda, mão gordinha e lisa tocando mão gordinha e lisa, cabeleira farta e oxigenada jogada rente o rosto que estica as narinas para sentir o cheiro de cabelo limpo, as pernas torneadas de D. Mercês, que aproveita a dádiva da natureza para exibi-las fora da saia curta, causando frisson nas amigas... Elas aproveitam os minutos do prazer que tem hora para acabar e começar outra vez na próxima semana. E assim o dia amanhece. Pela porta agora aberta saem homens e mulheres com o cigarro aceso. Eles, amarrotados, felizes e acompanhados de outros. Elas, retocadas, embriagadas, alegres e acompanhadas de outras.
IV
A mala de Help, D. Socorro para o antigo chefe, está sempre pronta. O único filho é médico e passa mais tempo no hospital do que na vida aqui fora. Solteira e já passado há muito dos cinquenta, Help cansou de exigir a companhia do filho nos eventos que gostaria de ir depois da morte da tia velha de quem cuidou por longos e solitários vinte anos. Da última vez que pediu para ir com ela ao show de Zezo, o rapaz aconselhou: “chame uma amiga, mamis”. “Ou melhor, convide o bofe que fica do seu lado na igreja. Ele é uma gracinha, e tem grana!”, completou piscando o olho e saiu porta afora sem esperar a resposta da mãe, que não vai à missa desde a morte do pai há quarenta anos e tampouco conhece outro bofe além de Jiló dos teclados, de quem é fã e segue no Instagram. “Se não é o da missa é você, meu Jiló!...”, grita Help e corre ao celular como se tivesse descoberto algo de grande importância. “Alô! é da produção de Jiló?” “É sim!”, diz a voz do lado de lá. “Onde é o show dele neste final de semana?” “Em Maceió, minha Senhora!” “Por favor, me passe a agenda completa de Jiló.” E assim Help passou a acompanhar seu ídolo em todos os recantos do Brasil. Depois de Maceió ela seguiu para Fortaleza, de lá para Brasília, de onde voou para Rio Branco, Manaus, Recife, Aracaju, Belém...
V
Joaquim pinta os cabelos e o bigode de acaju. Leu na revista do salão que frequenta quinzenalmente que a tonalidade deixa o coroa sexy e novo. “Ar-ra-zou!”, exclamaram as cabeleireiras quando viram o resultado final. Faz algum tempo que Joaquim diz ter cinquenta. Mas todos juram que o coroa se aproxima dos setenta. “É só observar o couro do pescoço e dos cotovelos, é de setenta!”, garante Lídia depois de ver o desejo de namorar Joaquim ir de água abaixo. Ela soube pelas amigas que o pretendente não troca a bicicleta por mulher nenhuma. Já foi casado algumas vezes, tem alguns filhos que havia tanto tempo que não os vê que chegou a esquecer de nome e idade deles. Não se demora em remorsos nem conselhos sobre velhice, doença e solidão: tem remédio para tudo isso. Já faz três anos que pedala no grupo Tarados de bike. São quatro companheiros com ele. Nada de mulher. Nada de paradas em lugares festivos e barulhentos. Em noites de lua cheia tocam flauta ao redor da fogueira.
Joaquim pedala atrás. Tem paixão pelas florzinhas roxas, aquelas parecidas com vulvas negras, e colhe-as o quanto cabem os bolsos da calça. À noite, distante dos demais, ele infla o colchão e se deita de frente para a coleção de xibius murchos e secos. Não discrimina nenhum. Ama a todos. Já contou cem, todos diferentes um do outro e com nome de acordo com a anatomia que ele carrega no portfólio organizado exclusivamente com textos e imagens do órgão feminino. Antes de adormecer Joaquim acaricia e beija cada um. Sonha que as criaturas de carne roxa criaram pernas e o prendem no chão com a bunda para cima. Mas o dia já amanheceu e Joaquim se espreguiça molemente sobre as florzinhas espalhadas, massacradas e agora sem as pernas. Passa a arrumá-las na latinha em que guarda o segredo. Sente falta de uma, a mais depravada da coleção. Depois de vasculhar o entorno sem sucesso, já em cima da bike para a longa pedalada de 100 km, ele sente algo bolinando no suor que desce rego abaixo. Passa a mão carinhosamente no finalzinho da coluna e lá está a florzinha apegada.
VI
A casa de Olímpia é pequena e lavada em cal. Tem a frente voltada para o nascente com portas e janelas azuis eternamente fechadas. Um quintal e sete gatas. Todas com nome de poeta: Adélia, Hilda, Florbela, Cecília, Carolina, Safo e Zila. Também já passou dos sessenta, porém todos juram que tem 80. Gorda e de mal com espelhos e academias ela fuma um pacote de Trevo no correr do dia e bebe generosas doses de conhaque comprado ali mesmo no bar da esquina, cujo dono, Celeste, tem o hábito de, aqui acolá, quando toma umas e outras e perde a timidez, mandar à senhora misteriosa espetinhos de coração acompanhados de algumas nove horas. Olímpia é indiferente não só a Celeste, a quem nunca deu um bom dia, pois quando necessita de conhaque, fumo ou água pede pelo celular, mas a muitas coisas que resolvera matar de deslembrança. E uma delas eram os vizinhos, que odiava. Vivia de escrever, regar as flores e cuidar das bichanas. Se alguém próximo perguntasse por que não tinha um amor, de pronto respondia que havia demitido o vagabundo. O vagabundo era o amor. E completava a justificativa sem mágoa nem autocomiseração: “não há nada de amor em minha vida senão adeus”. Há muito foi se deixando ficar só com os livros, os rascunhos amarelados, a velha Olivetti, substituída pelo computador que ganhara da escola em que foi professora por trinta anos, uma vitrola e dezenas de discos de jazz. Preferindo miados e ronronar, Olímpia descobriu seu jeito de ser entre os demais jeitos de ser encontrados por mim no cacareco de Romântico. E no seu jeito de ser ela deu uma atenção especial às flores que recebe todas as manhãs de sábado. Flores que, pela simplicidade, supõe roubadas da pracinha por alguém sensível à natureza, assim como ela é com os girassóis que semeou no canto do muro. Jamais procurou saber de quem era aquele gesto de amor ou de admiração. A ela não interessam os sentimentos nem a dedicação de quem lhe manda flores. Mesmo assim não deixa de gostar do anonimato daquele estranho encantador: “É poeta...”, pensa sem imaginar e apanha do chão as ramas orvalhadas de nove horas deixadas antes das sete. Depois de contemplar o presente por alguns segundos, ela arruma o buquê no vaso de vidro branco. Demora ainda um pouco na contemplação do colorido diverso das florzinhas e diz olhando Cecília, que brinca com uma florzinha destacada do galho: “longe de mim cultivar nove horas!”. Vai até os vinis e escolhe Billie Holiday. Enche o copo de conhaque e ouve enquanto acaricia Safo.
VII
Passava das duas da madrugada quando terminei a análise do caco de Romântico. Estava tão concentrado e curioso para ver até onde iam os seis passageiros que encontrei naquele fragmento que tive um sobressalto ao perceber o caos em que havia mergulhado a casa e os sentidos. Luzes muitas e de todas as variantes, gargalhadas, gritos, palavrões, tiros, reza, vômito, ladrões, carros, bosta, gigolôs, paredões, putas, drogas, trepadas, choro... O que fazer com o universo que dava cria no meu quarto? Depois de quase cegar sob o efeito intenso da luminosidade que atravessava os frascos de perfume da penteadeira, formando miríades de cor, pensei na caixa preta que havia comprado para proteger os filmes preto e branco da luz. “Pronto, encontrei o lugar!”, disse empurrando cada coisa para o fundo da caixa. E livre da desordem agora presa na escuridão, me lembrei de que ainda não havia tomado o xarope.  O sono chegou poucos minutos depois de engolir o líquido preto, um sono vazio e sem cor.

Ana Barros
Natal, 15 de maio de 2018.




VIDA

barulho, a agitação febril, a exterioridade e a multidão, ameaçam a interioridade do homem; falta-lhe o silêncio com a sua genuína palavra interior, falta-lhe ordem; falta-lhe oração, falta-lhe a paz, falta-lhe ele mesmo.
o é a carência do convívio social que impele o homem ao refúgio, mas a sua exuberância. A excitação, o barulho, a agitação febril, a exterioridade e a multidão, ameaçam a interioridade do homem; falta-lhe o silêncio com a sua genuína palavra interior, falta-lhe ordem; falta-lhe oração, falta-lhe a paz, falta-lhe ele mesmo.