quarta-feira, 19 de abril de 2017

Relações naturais

olhei em redor de mim 

o chorume descia doce desde que beijei a boca do lixo
mas não tarda o fim amarga
abre a ferida metafísica que rói
a sem-razão no mundo que alimenta sombra
guerra? então é guerra!
o corpo doído doido desprega
das dobras tantas vezes chama
tantas vezes dobra
porém esqueceu de olhar [cadáveres assombram]
e outra vez repousa débil
na lama
                  
Ana Barros

Natal, 28 de setembro de 2015 (concluída em abril/2017)

quarta-feira, 5 de abril de 2017

Retorno de Judas

A raiva que escondem o ano inteiro para mostrar longe das peias da obediência do convívio entre homens e coisas foi rasgada no Sábado de Aleluia. Dia inventado para minha desgraça e redenção dos que são roídos de culpa. Talhado de baixo para cima com a faca que haviam cortado as vísceras do porco – sou estripado. Vejo cuspir no chão os molambos que foram até ali intestinos. O círculo de revoltados se fecha em torno da minha agonia: paulada sobe, paulada desce, paulada zumbe no ar gritado de prazer e fúria. Marmanjos aproveitam a inação dos membros de fiapos dos quais sou feito e descarregam urros de vingança e ódio. Fui morto sem fugir à covardia dos que querem a vida sem fezes: sou o espírito do pesadelo. Sou a inércia rompida quando me amarram à estaca fincada na rua diante da turba que grita “traidor!”. Ali sou esquartejado. Tenho a cabeça atirada longe com um pontapé do peladeiro da rua, o mais empenhado na minha destruição que, ele não sabe, é também a sua. Arquejo sob os dribles dos moleques quando sinto a ponta da faca entrar nas órbitas dos meus olhos de esmeralda. Abandonado e arrastado na poeira, cego porque vi o que é não visto, apanho algumas pontas de linha que haviam enroscado na estaca e amarro no último molambo que restou de mim caído. Porém, para a minha imortalidade, bruxa Cuca, que protege Judas, espantalhos e bonecas de pano, surge diante de mim carregada de artifícios da criação. Aproxima a mão de jacaré do pequeno retalho entrelaçado de linhas e guarda-o no couro mágico. E, meia noite em ponto, hora do lusco fusco da danação, Cuca recompõe meu corpo despedaçado. Com o polegar e o indicador da mão esquerda ela fecha as fendas onde antes brilhava meus olhos e arremata com um ponto preto em forma de cruz. Surpreso por não repor os botões de esmeralda no lugar que fora vazado, imploro que ela faça de novo eu ser. Mas já é manhã, Domingo de Páscoa. Não mais vestígios de ódio, nem mais pedaço de Judas. Os meus algozes estão calmos e veneráveis nos bancos da igreja. Vestem branco e trocam a carne sangrenta por chocolate. O padre repete: “aleluia, aleluia, aleluia...”.

Ana Barros
Natal, 04 de agosto de 2011.