segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Bicho de casa

Ter preferência por determinado animal e outro não é tão complexo quanto nossas escolhas pessoais, nem sempre sensatas. Gatos e cães são de longe os mais aceitos no interior da casa, tanto por crianças como por adultos. São eles também os que recebem atenção, amor e cuidados como se fosse gente. Não são poucos os que transferem seus afetos a felinos e cachorros. Tia Nina, viúva e ainda no vigor dos 70 anos, tem profunda relação com os de pelo, sustenta vários com a pequena pensão. Conversa com eles, dá sermões moralistas de mãe, vacina, manda ligar as trompas das fêmeas, castrar os machos e, quando morre um, sepulta seu defunto com todo o aparato merecido: velório, caixão, mortalha, flores e cova no jardim. Gasta uma pequena fortuna com ração, produtos de higiene, veterinário, vacinas, cirurgias e remédios. Depois de tratados, cuidados e domesticados são transformados em eternas e dóceis criaturas que não mais reproduz nem incomoda sua dona com cio e vadiagem. Conhecendo a paz que reina na casa de tia Nina diria que dedicar-se a bicho é manter a ordem e o equilíbrio não encontrados no convívio com o herdeiro da razão.
Apesar de ser próxima não compartilho as escolhas de tia Nina. Diferente dela, desde cedo, escolhi a confusão e o tédio das relações com humanos. Com o pensamento pensando as 24 horas do dia, fica impossível abrir mão do encontro e da palavra, nem que seja com o anônimo que encontramos ao acaso no caminho de casa. Não saberia conviver no silêncio estúpido de animais esbarrando nos meus pés ou latindo na entrada da casa como a dar um recado àquele que se aproxima: “fique longe”. E o “recado” funciona muito bem. Tia Nina sabe, e gosta disso. Em pouco tempo a casa se fez morada do cachorro, eco de latidos. Cheguei a ver o cachorro de tia Nina tomar conta de sua cama e ela ter que se arranjar num pequeno sofá já que o cão, enorme, atravessa de um lado ao outro o colchão e não admite ninguém perto dele, nem mesmo a sua fiel dona.
Mas no mundo não existem só cães e gatos para ser admirado e amado. Há milhares de espécies, das mais nobres às mais repugnantes, que chamam a atenção por sua existência quase invisível e reduzida a poucos estímulos. Em longa entrevista à jornalista francesa Claire Parnet, Gilles Deleuze começa o seu Abecedário – https://www.youtube.com/watch?v=rjAVlq4o8vk – com “A”, de Animal. E, pasmem, entre bichos cujo fascínio encanta o filósofo como aranha, piolho e carrapato, Deleuze destaca o último como o que mais lhe chama a atenção por sua persistência em apenas três estimulantes para existir: a luz, o olfato e o tátil. Ele, o carrapato, tem concentração e paciência para passar anos na extremidade de um galho, sem se mover nem se alimentar de nada só na espera do ruminante que por ali passar e, com a ajuda da luz, o cheiro do animal e o local com menos pelo, o carrapato atira-se feito uma flecha nas costas do mamífero. Deleuze é um crítico bem-humorado de adultos que constroem uma ralação humana com cachorros e gatos. Diante da estranha comunhão homem bicho, ele reconhece que apenas as crianças se relacionam de forma não humana com os animais. Ou seja, “O importante é ter uma relação animal com o animal”, observa o pensador como a ensinar que existe a linguagem da inocência, aquela entre bicho e bicho, ou seja, entre a criança e o animal. Aqui eu ousaria acrescentar a presença do louco cuja aproximação dos animais é conhecida pela forma do contato não só não humano, mas além do humano.
Longe de ser contra o amor de tia Nina por gatos e cães, eu, por não suportar a submissão de animais, racional ou não, tenho afeto apenas por dois: o homem, pela semelhança e dessemelhança comigo, e a lagartixa, que, desde criança, acompanha os meus passos e chama a atenção para algo que, no início, achei estranho, sem clareza. Olhava para ela deslizando na superfície do muro, ou me observando pelas frestas do telhado e sentia que falava comigo, só não compreendia o quê. Com o passar dos anos, porém, aquela linguagem silenciosa e de afirmação com a cabeça foi se revelando a maior metáfora a ser decifrada por mim, já adulta, pois a lagartixa era, e ainda é, o que ninguém pode ser sem sacrificar paixão, desejos e impulsos, mesmo enchendo a casa de lindos e dóceis gatos.
O filósofo Schopenhauer, que tinha mais respeito pelo cão do que pelos vizinhos, desenvolveu um pensamento sobre como amortecer os impulsos, a vontade individual, como meio de superar os desejos. Na fase madura ele adota o cachorro Atma, nome ironicamente escolhido por significar “a alma do homem”, como companhia de sua vida solitária. Mesmo na companhia de Atma continuou azedo com o mundo e na busca do que era possível apenas se matasse a Vida. Mas, será que se o grande filósofo alemão tivesse levado para casa uma lagartixa em vez de um cachorro não teria sido feliz encontrando um igual na lagartixa solta, emancipada, silenciosa, solitária, distante e prenhe de Nada?
Mesmo migrando do mato para a cidade a lagartixa não perde nada da sua individualidade animal, continua majestosa e urbana. Olho para ela colada no muro. Finge dormir. Esperta, engole o inseto que passa. Passeia não como o gato malicioso e falso. Passeia despreocupada e elevada à condição dos alienados. Diferente do cão que late e morde aquele que confia que é seu “amigo”, diferente ainda do espertíssimo carrapato que, amorfo, sobrevive anos apenas para enfiar-se matreiro numa carne quente sem se importar com mais nada, a lagartixa, no seu mutismo e preferência por frestas, claro-escuro e pequenos insetos voadores, também parece não se importar mais com nada. Não o nada vulgar do carrapato oportunista, que vive em função de três estímulos. Mas um nada, um vazio também de todas as coisas do mundo e que, por isso, perderam importância para outras aventuras escondidas nas cumeeiras da cidade e nas locas das pedras, locais onde latidos, miados e ruminantes passam por longe. Porém uma curiosidade não tão do agrado de Schopenhauer, a lagartixa gosta de viver perto do homem: ora elevada, ora rasteira. Rural e urbana, ela se adapta a diferentes meios.
Ana Barros
Natal, 22 de julho de 2015.




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