Ter
preferência por determinado animal e outro não é tão complexo
quanto nossas escolhas pessoais, nem sempre sensatas. Gatos e cães
são de longe os mais aceitos no interior da casa, tanto por crianças
como por adultos. São eles também os que recebem atenção, amor e
cuidados como se fosse gente. Não são poucos os que transferem seus
afetos a felinos e cachorros. Tia Nina, viúva e ainda no vigor dos
70 anos, tem profunda relação com os de pelo, sustenta vários com
a pequena pensão. Conversa com eles, dá sermões moralistas de mãe,
vacina, manda ligar as trompas das fêmeas, castrar os machos e,
quando morre um, sepulta seu defunto com todo o aparato
merecido: velório, caixão, mortalha, flores e cova no jardim. Gasta
uma pequena fortuna com ração, produtos de higiene, veterinário,
vacinas, cirurgias e remédios. Depois de tratados, cuidados e
domesticados são transformados em eternas e dóceis criaturas que
não mais reproduz nem incomoda sua dona com cio e vadiagem.
Conhecendo a paz que reina na casa de tia Nina diria
que dedicar-se a bicho é manter a ordem e o equilíbrio não
encontrados no convívio com o herdeiro da razão.
Apesar
de ser próxima não compartilho as escolhas de tia Nina. Diferente
dela, desde cedo, escolhi a confusão e o tédio das relações com
humanos. Com o pensamento pensando as 24 horas do dia, fica
impossível abrir mão do encontro e da palavra, nem que seja com o
anônimo que encontramos ao acaso no caminho de casa. Não saberia
conviver no silêncio estúpido de animais esbarrando nos meus pés
ou latindo na entrada da casa como a dar um recado àquele que se
aproxima: “fique longe”. E o “recado” funciona muito bem. Tia
Nina sabe, e gosta disso. Em pouco tempo a casa se fez morada do
cachorro, eco de latidos. Cheguei a ver o cachorro de tia Nina tomar
conta de sua cama e ela ter que se arranjar num pequeno sofá já que
o cão, enorme, atravessa de um lado ao outro o colchão e não
admite ninguém perto dele, nem mesmo a sua fiel dona.
Mas
no mundo não existem só cães e gatos para ser admirado e amado. Há
milhares de espécies, das mais nobres às mais repugnantes, que
chamam a atenção por sua existência quase invisível e reduzida a
poucos estímulos. Em longa entrevista à jornalista francesa Claire
Parnet, Gilles Deleuze começa o seu Abecedário –
https://www.youtube.com/watch?v=rjAVlq4o8vk
– com “A”, de Animal. E, pasmem, entre bichos cujo fascínio
encanta o filósofo como aranha, piolho e carrapato, Deleuze destaca
o último como o que mais lhe chama a atenção por sua persistência
em apenas três estimulantes para existir: a luz, o olfato e o tátil.
Ele, o carrapato, tem concentração e paciência para passar anos na
extremidade de um galho, sem se mover nem se alimentar de nada só na
espera do ruminante que por ali passar e, com a ajuda da luz, o
cheiro do animal e o local com menos pelo, o carrapato atira-se feito
uma flecha nas costas do mamífero. Deleuze é um crítico
bem-humorado de adultos que constroem uma ralação humana com
cachorros e gatos. Diante da estranha comunhão homem bicho, ele
reconhece que apenas as crianças se relacionam de forma não humana
com os animais. Ou seja, “O
importante
é ter uma relação animal com o animal”, observa o pensador como
a ensinar que existe a linguagem da inocência, aquela entre bicho e
bicho, ou seja, entre a criança e o animal. Aqui eu ousaria
acrescentar a presença do louco cuja aproximação dos animais é
conhecida pela forma do contato não só não humano, mas além do
humano.
Longe
de ser contra o amor de tia Nina por gatos e cães, eu, por não
suportar a submissão de animais, racional ou não, tenho afeto
apenas por dois: o homem, pela semelhança e dessemelhança comigo, e
a lagartixa, que, desde criança, acompanha os meus passos e chama a
atenção para algo que, no início, achei estranho, sem clareza.
Olhava para ela deslizando na superfície do muro, ou me observando
pelas frestas do telhado e sentia que falava comigo, só não
compreendia o quê. Com o passar dos anos, porém, aquela linguagem
silenciosa e de afirmação com a cabeça foi se revelando a maior
metáfora a ser decifrada por mim, já adulta, pois a lagartixa era,
e ainda é, o que ninguém pode ser sem sacrificar paixão, desejos e
impulsos, mesmo enchendo a casa de lindos e dóceis gatos.
O
filósofo Schopenhauer, que tinha mais respeito pelo cão do que
pelos vizinhos, desenvolveu um pensamento sobre como amortecer os
impulsos, a vontade individual, como meio de superar os desejos. Na
fase madura ele adota o cachorro Atma, nome ironicamente escolhido
por significar “a alma do homem”, como companhia de sua vida
solitária. Mesmo na companhia de Atma continuou azedo com o mundo e
na busca do que era possível apenas se matasse a Vida. Mas, será
que se o grande filósofo alemão tivesse levado para casa uma
lagartixa em vez de um cachorro não teria sido feliz encontrando um
igual na lagartixa solta, emancipada, silenciosa, solitária,
distante e prenhe de Nada?
Mesmo
migrando do mato para a cidade a lagartixa não perde nada da sua
individualidade animal, continua majestosa e urbana. Olho para ela
colada no muro. Finge dormir. Esperta, engole o inseto que passa.
Passeia não como o gato malicioso e falso. Passeia despreocupada e
elevada à condição dos alienados. Diferente do cão que
late e morde aquele que confia que é seu “amigo”, diferente
ainda do espertíssimo carrapato que, amorfo, sobrevive anos apenas
para enfiar-se matreiro numa carne quente sem se importar com mais
nada, a lagartixa, no seu mutismo e preferência por frestas,
claro-escuro e pequenos insetos voadores, também parece não se
importar mais com nada. Não o nada vulgar do carrapato oportunista,
que vive em função de três estímulos. Mas um nada, um vazio
também de todas as coisas do mundo e que, por isso, perderam
importância para outras aventuras escondidas nas cumeeiras da cidade
e nas locas das pedras, locais onde latidos, miados e ruminantes
passam por longe. Porém uma curiosidade não tão do agrado de
Schopenhauer, a lagartixa gosta de viver perto do homem: ora elevada,
ora rasteira. Rural e urbana, ela se adapta a diferentes meios.
Ana
Barros
Natal,
22 de julho de 2015.
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