domingo, 28 de dezembro de 2014

VERÃO



É verão
Queima a borrasca
do inverno sem gozo
do excesso de panos
dos banhos quentes
noite longa e dia morto
É verão
Aquarela é quem dá a cor
amarela do subsolo:
Vulcano é o artífice
da estação de fogo

Ana Barros

R E T R Ô



Sábado. Abrir janelas, regar as plantas, varrer o ar
ir ao mercado e dizer feliz "como vai Edilson?"
e de lá trazer a garrafa de vinho tantas vezes bebido
tantas vezes querido ao som de "como vai Edilson?"
Sábado. Estender as calcinhas de renda azul no quintal
entre uma viga e a outra viga do vizinho que tem um cachorro e que eu sei
bate bronha atrás da cortina
Sábado. Aroma de lavanda a adoçar o corpo na tarde lilás
O vinil chora "Non, je ne regrette rien...”

Ana Barros
Natal, 27 de dezembro de 2014.


segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

O ESSENCIAL ENTRE O CHÃO E O CÉU



O homem está no topo da árvore. Cento e tantos metros. É a árvore mais alta da cidade. O homem se equilibra entre o chão e o céu. Há promessa de felicidade por alguns minutos. Alguém passa em alta velocidade e grita da janela do carro: “otário, sai daí!” O ônibus também passa. O passageiro pergunta para o companheiro do lado: “pra quê isso? Que necessidade tem esse homi de colocar a vida em perigo por uma coisa fútil como Árvore de Natal?” Se o homem-pingente ouvisse tais insultos e reprovações, provavelmente responderia: “bem se ver que vocês não entendem nada de Belo. Se entendessem, largariam todo o entulho de vida miserável que levam e passariam as horas contemplando esta árvore que eu tenho o prazer de dar à luz.” Fútil? Pode ser aos olhos daqueles para quem a vida é uma eterna desgraça, um castigo sem trégua não havendo tempo a perder com inutilidades tipo pisca-pisca e Papai Noel. Aliás, “alienações europeias”. No entanto, pode também ser contemplado como gesto gratuito, uma vez que o essencial é dado. Mas quem é que colhe o que não tem preço num mundo volatizado? O homem-pingente diria mais uma vez: “aquele que, conhecedor do passar de todas as coisas, inclusive dele, mesmo cansado de carregar a maldição de Sísifo, para um instante e observa –  desinteressado.”

A cena do homem no topo da árvore lembra um conto de John Steinbeck, que não recordo mais o nome, cujo protagonista é casado com uma mulher que o domina por ser a mantenedora de tudo, inclusive do humor do marido. Tem o domínio das terras onde ele trabalha arduamente para acumular fortuna. Mas como domínio excessivo pode ser a senha para a desgraça do dono, a esposa, sabedora das fraquezas humanas, concedia uma vez no mês a ida do marido à cidade, onde este permanecia por dois dias entregue à bebida e aos braços de alguma bela dama. Voltava mais disposto e bem-humorado para de novo começar o que não tinha fim. Assim se passaram os anos e os dois, envelhecidos e sem filhos, acumularam fortuna e terras vastas até não caber na vista. Agindo com mão de ferro sobre a vida do marido, a mulher esquecera que um dia a existência finda e tudo o que se adquire pensando ser eterno, vira fumaça, ou melhor, flores. Pois bem, chegou o dia e a morte levou a mulher, só ela, pois as terras e tudo o que nelas havia eram a partir de então de um único herdeiro, o marido. Antes de qualquer decisão ou atitude nessas horas fúnebres, vem a obrigação do velório junto aos amigos, só estes, pois a defunta não tinha parentes. E como não podia ser diferente, não passava um segundo sem que o viúvo caísse em pranto. Chorava copiosamente diante daquela que o trouxera, até aquele momento infeliz, amarrado à sua vida mesquinha. Passava das duas da madrugada quando todos se retiraram ficando apenas um amigo que, além de vizinho, era confidente do viúvo. Este, para espanto do amigo, após fechar a porta à chave e perscrutar todos os cômodos, caiu na mais estrondosa gargalhada. Riu por mais de cinco minutos até se dirigir a um armário e tirar lá de dentro uma garrafa de uísque. Encheu os copos várias vezes e varou o resto da noite embriagado, feliz e liberto.

Passados os primeiros dias do luto e da limpeza das lembranças ruins, não havia lembrança boa, contratou várias máquinas possantes e mandou passá-las sobre todas as plantações que havia, sob o comando da esposa, semeado com os empregados. Os campos enfim ficaram sem nenhum vestígio da raiz que lembrasse a fadiga e o julgo impostos por sua ex- dona. Senhor de tudo, e de si também, ordenou que os empregados dividissem as terras em quatro grandes lotes, um gigantesco quadrado cortado em cruz. Ali plantaram papoulas de quatro cores. Desde então, o viúvo, livre, feliz e ocioso, armou a rede na varanda e passou as horas contemplando os campos de flores.

Ana Barros
Natal, 14 de dezembro de 2014.



domingo, 14 de dezembro de 2014

"EU É OUTRO"



 Eu com você ausente
Sou fantasma e apêndice
Cola sem os objetos
Da passional querência
Trégua
Poesia
Reinvento
Você culpado
Eu inocente

Ana Barros
Natal, 14 de dezembro de 2014.


domingo, 7 de dezembro de 2014

LAMATOWN: REALISMO SURRADO



Este ano o Auto de Natal foi substituído por Lamatown, com encenação em vários pontos da cidade no período natalino. Fui ver o espetáculo na Praça da Árvore do conjunto residencial Mirassol, em Natal, onde permaneceu por três dias. O texto, adaptado de Um Inimigo do Povo (Ibsen,1882) por Clotilde Tavares, escritora paraibana, é tão realista que pensamos estar diante da campanha política para presidente da República de 2014. Pontilhado de ironia e cinismo tanto em relação às autoridades quanto à sociedade em geral, o trabalho de Clotilde expressa uma crítica velada ao governo do Partido dos Trabalhadores (PT). Há referências indiretas ao programa social Bolsa Família, ao consumo dos empregados cuja ascensão de classe estimulou e ainda estimula o ódio das elites, estas, em completa promiscuidade com os beneficiados dos programas corruptos de Lamatown. Ou alguém não reconheceu a presidente Dilma na personagem que representa o poder por trás de toda a maquinação, de toda a corrupção em Lamatown? O realismo da peça, que vale ressaltar a excelência técnica dos atores, o som maravilhoso e o cenário minimalista e caótico, é puro niilismo de uma sociedade decadente e a beira de um colapso, ou, quem sabe, de um golpe? Se em Ibsen há o conflito entre o indivíduo e o coletivo, sugerindo uma moral de que homens e mulheres podem mudar a História, em Lamatown nos deparamos com a cumplicidade nefasta e vazia de ética entre povo, governo e instituições. A Doutora, representada por Águeda Ferreira, corrompida no passado e responsável pelas análises e laudos da lama, heroína do bem que descobre toda a farsa, poderia ser o marco da transição para um mundo diferente. Mas não é. A vida mesma, apesar da punição de todos pelas mãos da natureza, com a verdade sobre a fraude da lama, que de cura não tem nada e sim, é lama podre e que causa paralisia em quem nela mergulha, sobrevive sob o comando do ícone absoluto que é o poder acima de bem e mal encarnado na figura da prefeita, presidenta, rainha? É aqui que o espectador atento, à espera de uma catarse, é tomado pela sensação de estranheza, pois o mundo da Internet e das redes sociais, no qual se informa e forma, não é mais o mundo do realismo de Ibsen nem de Lamatown. Hoje ele, o mundo, é hiper-real e trata não de um, mas de uma diversidade de poderes. Aliás, o poder focado em Lamatown, Estado, Imprensa, segurança, justiça, agoniza na superfície do mundo contemporâneo. Este, deslumbrado com as novas mídias e tecnologia, faz a informação chegar a todos em tempo real, deixando para trás quaisquer tentativas de cristalização do tempo e seus personagens. Mas é ainda mergulhado no pesadelo kafkiano que o indivíduo busca uma arte revolucionária e mágica, pois solidão e tédio continuam a atormentar apesar da impressão de que se vive num eterno presente. Lamatow se dirige a esse homem líquido que boia no tempo, no entanto, permanece amarrada a um poder corroído através dos séculos sem dizer que ele, o poder, está moribundo. Ao contrário, mostra em estado cru o que elege como real, deixando a sensação de que já vimos o enredo milhares de vezes sem que ninguém nada fizesse ou mudasse de lugar. Talvez em função do acesso universalizado à Internet, com pretensões democráticas, muitos de nós consideremos que a realidade é apenas o que vemos, curtimos ou não, e compartilhamos em blogs e Facebook. Ledo engano. Como sempre, houve e haverá outras versões do real, acessíveis àqueles poucos que dominam o conhecimento. Em Lamatown a representante do sindicato das lavadeiras, o estudante universitário e o presidente da Câmara de Vereadores são caricaturas da banalização do real. Sem dúvida que essas categorias existem e são, em muitos casos, cooptadas pelo poder. No entanto, essas mesmas representações da sociedade, incluindo aí o Ministério Público, uma imensa quantidade de ONGs responsáveis, a Imprensa independente dos blogs, trabalhadores públicos e privados comprometidos com a vida, os milhares de artistas e profissionais liberais que dão as costas ao sistema corrupto e passam a viver de sua arte ou habilidades com responsabilidade e independência, desenvolvem já a longos passos a política do mundo contemporâneo, que pode ser a ruptura com o real cínico e niilista que Lamatown apresenta como verdade. Insistir na fórmula de que o mundo é um mar de lama é condenar o espectador à eterna prisão da culpa, castigo e inércia. Lamatow insiste na repetição angustiante do mesmo demônio invisível, que é o poder esmagador do Estado sobre os indivíduos, impotentes, fracos e corrompidos. Mas, observando a cena atual pós valores e comportamentos obsoletos, será que ainda continuamos os mesmos de trinta anos atrás? Será que textos do século dezenove como Um Inimigo do Povo e Lamatown, este apesar da redação atualizada, ainda causam espanto e levam à ação? Ou será que em cima do monturo da História já não forjamos nova e revolucionária ação? O tempo vai dizer... Se não já diz a ouvidos muito sutis.

Ana Barros
Natal, 07 de setembro de 2014.