Ir
a pé ao supermercado em dia de domingo cortando caminho pelas ruas e becos do
conjunto popular é um convite às recordações do tempo em que o prazer da mãe
era reunir a família em torno da mesa no dia cristão reservado ao descanso.
Aprecio o cheiro das flores e arbustos que encontro nos pobres jardins onde
floram as sempre-vivas e os cravos silvestres. Mas o espanto fica por conta do
cheiro que vem das cozinhas, cujas donas já foram à feira, muito cedo ainda, e
agora, desdenhando o olhar pidão e cacete do gato, mexem a carne de boi ou de
frango sob a alquimia dos temperos que os filhos, já adultos, casados e com filhos,
não deixam de saborear, pois filhos são impregnados dos cheiros da mãe, tanto da
pele quanto dos alimentos que, desde o nascimento, põe na boca dos rebentos.
Pode
alguém pensar que me refiro a uma mãe do século passado visto que, com a
independência da mulher e a socialização dos restaurantes, nenhuma mãe hoje em
dia cozinha para marmanjo que se lembra dela, a mãe, só em dia de domingo no
intuito de “filar” um rango. Sou mãe, mas no domingo cozinho só para mim. Isso
sem causar traumas a ninguém. Meu filho pediu alforria da mãe e do sabor de sua
comida. Algum drama? sim, pois ninguém se desfaz da cultura do dia para a noite.
Porém, o melhor veio logo após o esvaziamento da pia e do fogão sem chamas no
dia santo.
Entendo
que nem todas as mulheres trilhem os caminhos que as levariam se desfazer do
que sabem melhor: cuidar, proteger e se fazer lembrada por aqueles que mais ama
utilizando-se da magia da cozinha, símbolo evidente do laço eterno, em muitos
casos, só desatando com a morte da mãe. Subo na calçada para sentir melhor o
aroma de carnes e legumes que toma conta da rua. Olho tudo ao redor e o cenário
é igual em todas aquelas casas com jardim, quintal e a varanda onde descansam
as cadeiras de balanço, as quais após o almoço e a revoada dos filhos, noras e
netos empanturrados da sobremesa que exigiram, sorvete de flocos, serão
ocupadas pelos donos da casa sonolentos, sozinhos e entediados.
A
crônica de domingo é a repetição ofegante desde que essa mulher se casou e os
filhos nasceram, até que chega a velhice e ninguém percebe o cansaço da mãe e o
sem sabor da comida de vez em quando queimada pelo esquecimento que aporta na
idade. E sem qualquer aviso chega o dia que a todos visita e derruba a mãe
sobre uma cama de viúva. As panelas são desprezadas num canto da cozinha e
alguém é chamado para cuidar da velha doente. As visitas escasseiam-se. Os
filhos, noras e netos estão muito ocupados e não têm tempo para cuidar de
doentes tampouco para visitas aos domingos, dia de levar João no curso de
férias e Júlia ao shopping com as amigas. “Aliás”, lembra a filha mais velha
com a razão exata dos justos, “não fizemos a vaquinha para pagar a auxiliar?” Mas...
onde os filhos, noras e netos passaram a almoçar no domingo?
Pode
ser que o círculo não tenha se fechado com a doença e morte da mãe. Pode ser
que comece tudo de novo na casa de um ou de todos os filhos, agora pais de
jovens com namoradas, logo logo casados. Mas também pode ser que, com a morte,
tanto simbólica quanto física da mãe, uma nova história comece a despontar. Aqui
lembro o poder de afirmação da consciência individual no romance “A Mãe”, de
Gorki, cujo desenrolar leva uma dona de casa oprimida pelo marido, operário alcoólatra
e violento, este, reflexo de uma sociedade brutalizada, a se libertar como
revolucionária. Mãe de filho único, analfabeta, mas com grande poder de
percepção de mundo e dos homens, aliás, muitos dos personagens de Gorki são
analfabetos e marginais, condição que não os impede de refletir e se
transformar. Na perspectiva humanista de
Gorki, a mãe se liberta lentamente na medida em que o filho, Pavel, que é
operário da fábrica, vai lhe mostrando a necessidade de participar de outro
mundo mais interessante que o confinamento numa cozinha. Mas Nílovna quer mais,
quer aprender a ler para compreender o que o filho e os amigos leem clandestinamente
até altas horas da madrugada. Em pouco tempo ela vai superar todos com a sua
força, inteligência, coragem e solidariedade ideológica, não mais tomando como
base a religião, porem, a ética que desabrocha perante a dor e o abandono do
homem por Deus. Nílovna não é ateia, mas esqueceu de rezar...
O
romance A Mãe é um grande exemplo de como fechar um círculo opressivo e
desumano. Nílovna, como qualquer ser humano livre, jamais abandonará a cozinha
ou as panelas. Mas o fará agora como escolha, e uma escolha não para ser útil aos
filhos e sim como parceira de uma história que tem um sentido, que é a
conquista de si mesma. Ela não só cozinha, lava, costura, estuda, cuida de camaradas
enfermos no Hospital, dialoga com camponeses e operários, como viaja a pé ou de
trem longas distâncias para distribuir material de propaganda revolucionária. Pavel
está preso com outros. Os que ficaram apoiam a mãe em todos os sentidos. Apesar
da diferença de idade, vivem juntos a mesma realidade. A realidade dos que
conseguem forjar a sua própria independência. “Só são verdadeiramente homens
aqueles que arrancam as algemas da mente humana. Pois agora, a senhora também,
por esforço próprio, tomou a si esta tarefa”, diz Andrei a Nílovna, emocionado
com o aprendizado da aluna.
Foto: domínio do Google
Ana Barros