sábado, 26 de abril de 2014

SEM VALIDADE



É um prazer ter pais comerciantes e desde cedo conviver com a rotina de uma bodega. Conviver, principalmente, com a diversidade de pessoas que diariamente entra e sai do pequeno estabelecimento. Aqui e acolá ainda encontramos algumas vendas semelhantes àquelas que ficaram para trás após o desenvolvimento da técnica, da expansão das cidades, dos códigos sanitário e dos direitos do consumidor. Na sociedade da validade, fica difícil imaginar-se adquirindo alguma coisa sem rótulo e fora do prazo, aos montes dentro de um saco ou empilhados num canto de parede úmido onde os insetos pululam e o bolor toma conta dos grãos. Não faz muito tempo, todos que residiam no interior do Nordeste sobreviviam da cultura de subsistência e das compras feitas em mercearias e bodegas da cidade mais próxima, quando se realizava a troca do trabalho produtivo pelos gêneros não produzidos no campo. O desuso da balança, dos pesos e das medidas representa um avanço nas relações de compra e venda, porém, celebra a morte do contato direto entre vendedor e cliente, cotidiano de toda uma história de profunda ligação do homem à terra, aos animais e às parcerias campo e cidade. A impessoalidade e frieza dos supermercados e Shopping Center, com suas normas, funcionários falsos e fachadas padronizadas mundo a fora, fazem os mais românticos sentirem saudade da proximidade do dono da venda, apesar do balcão ensebado e das moscas varejeiras voando sobre as carnes expostas ao livre toque das mãos. O elo mais forte da relação entre bodegueiro e cliente não era a higiene nem o frescor dos alimentos, valores essenciais nas transações contemporâneas, mas tão somente o vínculo de confiança de duas pessoas que acreditam na honestidade uma da outra. Essa característica do comércio dos dias de nossa infância tem seu símbolo maior na caderneta do fiado, acordo firmado pelas duas partes, cuja quebra se tornava quase impossível uma vez que a necessidade e a proximidade com o credor deixavam o cliente vulnerável à alcunha de velhaco pelos vizinhos, todos, amigos do comerciante. Gostava de observar o momento em que se dava o negócio, meu pai do lado de dentro do balcão, de calças de tergal preto vincado e camisa de linho xadrez clara e o comprador do outro lado, chapéu de palha, cigarro pendurado no canto da boca, hálito de fumo misturado com aguardente, bolsa de palha e um saco branco para acomodar os mantimentos: “Compadre Antônio, me despache aí meia barra de sabão, meia libra de café, meia libra de açúcar, um mercado de óleo Benedito, uma garrafa de querosene, meia garrafa de pinga e um mercado de fumo. Anote na caderneta. Pago ainda esta semana quando vender o milho.” “Tá tudo aí no saco e anotado, compadre,” dizia meu pai depois de pesar, medir e embrulhar os mantimentos. Gostava particularmente do sábado, dia da preparação para a feira do domingo. O balcão, comprido e escuro, com uma pequena abertura que dava passagem, ficava cheio dos mantimentos embrulhados com a habilidade dos dedos de meus pais que, logo após, arrumavam, um a um, nas prateleiras de madeira fixadas nas paredes laterais da pequena loja que meus olhos de menina viam como um espaço enorme.

Ana Barros


DO BLOG "VOZ DE AREIA BRANCA"
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário