É
um prazer ter pais comerciantes e desde cedo conviver com a rotina de uma
bodega. Conviver, principalmente, com a diversidade de pessoas que diariamente
entra e sai do pequeno estabelecimento. Aqui e acolá ainda encontramos algumas
vendas semelhantes àquelas que ficaram para trás após o desenvolvimento da
técnica, da expansão das cidades, dos códigos sanitário e dos direitos do
consumidor. Na sociedade da validade, fica difícil imaginar-se adquirindo
alguma coisa sem rótulo e fora do prazo, aos montes dentro de um saco ou
empilhados num canto de parede úmido onde os insetos pululam e o bolor toma
conta dos grãos. Não faz muito tempo, todos que residiam no interior do Nordeste
sobreviviam da cultura de subsistência e das compras feitas em mercearias e
bodegas da cidade mais próxima, quando se realizava a troca do trabalho
produtivo pelos gêneros não produzidos no campo. O desuso da balança, dos pesos
e das medidas representa um avanço nas relações de compra e venda, porém, celebra
a morte do contato direto entre vendedor e cliente, cotidiano de toda uma
história de profunda ligação do homem à terra, aos animais e às parcerias campo
e cidade. A impessoalidade e frieza dos supermercados e Shopping Center, com
suas normas, funcionários falsos e fachadas padronizadas mundo a fora, fazem os
mais românticos sentirem saudade da proximidade do dono da venda, apesar do
balcão ensebado e das moscas varejeiras voando sobre as carnes expostas ao
livre toque das mãos. O elo mais forte da relação entre bodegueiro e cliente
não era a higiene nem o frescor dos alimentos, valores essenciais nas
transações contemporâneas, mas tão somente o vínculo de confiança de duas
pessoas que acreditam na honestidade uma da outra. Essa característica do
comércio dos dias de nossa infância tem seu símbolo maior na caderneta do fiado,
acordo firmado pelas duas partes, cuja quebra se tornava quase impossível uma
vez que a necessidade e a proximidade com o credor deixavam o cliente
vulnerável à alcunha de velhaco pelos vizinhos, todos, amigos do comerciante. Gostava
de observar o momento em que se dava o negócio, meu pai do lado de dentro do
balcão, de calças de tergal preto vincado e camisa de linho xadrez clara e o
comprador do outro lado, chapéu de palha, cigarro pendurado no canto da boca,
hálito de fumo misturado com aguardente, bolsa de palha e um saco branco para
acomodar os mantimentos: “Compadre Antônio, me despache aí meia barra de sabão,
meia libra de café, meia libra de açúcar, um mercado de óleo
Benedito, uma garrafa de querosene, meia garrafa de pinga e um mercado de fumo.
Anote na caderneta. Pago ainda esta semana quando vender o milho.” “Tá tudo aí
no saco e anotado, compadre,” dizia meu pai depois de pesar, medir e embrulhar
os mantimentos. Gostava particularmente do sábado, dia da preparação para a
feira do domingo. O balcão, comprido e escuro, com uma pequena abertura que
dava passagem, ficava cheio dos mantimentos embrulhados com a habilidade dos
dedos de meus pais que, logo após, arrumavam, um a um, nas prateleiras de
madeira fixadas nas paredes laterais da pequena loja que meus olhos de menina
viam como um espaço enorme.
Ana
Barros
DO BLOG "VOZ DE AREIA BRANCA" |
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