domingo, 6 de abril de 2014

O TEMPO MINGUADO

As lembranças da infância raramente coincidem com a volta ao objeto empurrado para trás com os cheiros e os sons que animaram a vida em começo. O baú com dobradiças de latão e que guardava as roupas usadas uma única vez no ano, nos festejos natalinos, é talvez o símbolo mais alegre no terreno do imaginário calcificado. Com que curiosidade olhava aquela arca que ocupava os pés da cama de casal sem jamais ser aberta diante dos meninos e das meninas da casa, tratados pelos adultos com a indiferença que tudo observa e dissimula como assunto sem importância. Além do baú e das malas de tábua, todos os utensílios e móveis usados no cotidiano eram vistos com a admiração de quem observa não a utilidade imediata, mas a beleza que deixa para sempre impressões de prazer. O pilão deitado, o moinho, a chaleira e a cuscuzeira de barro, as panelas e os potes, também de barro, o fogão de lenha sempre aceso, os bancos e a mesa de madeira rústica, todos ali ao alcance da mão que não conhece Bombril nem alumínio, mas tão somente o peso literal da matéria extraída do solo e transformada em formas redondas ou alongadas. Nada, porém, se compara à surpresa de voltar á casa onde nasceram os pais e onde se deu os primeiros passos. De grande não há mais nada a não ser a frustração de ver que a memória mergulhada nas configurações de uma época despertou no presente real do objeto que virou história. A casa se fez minúscula, acanhada, baixinha, sem a magia nem os fantasmas do corredor escuro. Os utensílios majestosos agora são cacarecos inúteis desprezados no quintal. Os móveis, roídos e oxidados, escoram alguma parede mole ou servem de abrigo à cadela com filhotes. Nenhuma roseira ao redor, nem a horta suspensa no jirau para evitar os cururus, nenhuma galinha de pintos ciscando no terreiro, nenhum jumento disputando o monturo com os porcos, nem mais um daqueles homens rústicos com a enxada no ombro e o cigarro de palha no canto da boca. Nada mais ali tem a ver com a memória redescoberta no tempo das coisas mortas e dos homens de tempo minguado.

Ana Barros

Foto: acervo do Memorial dos Fortunato
                                 



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