Há dias minhas lembranças,
que são por demais lá do cafundó, me fazem sentir vontade de escrever sobre um
assunto muito comum na minha infância de zona rural: o velório de anjo. Anjo porque criança morta é
símbolo da mais profunda piedade e elevação às alturas, sentimento comparado à
pureza de um anjo. E como foram muitos os meninos e meninas de morte prematura
àquela época de poucos recursos sanitários e consequente higiene precária! Nos
inúmeros velórios que fui na companhia de Tutu e de meus irmãos ouvi as
mulheres dizerem em voz baixa que a criança havia morrido de “mal do sétimo
dia”. Vim saber mais tarde que aquele diagnóstico popular era a simples e terrível
denominação do tétano, doença naquele tempo de falta da luz elétrica e de informação,
tão assustadora que, para pronunciá-la, dava-se três tapinhas na boca seguidas
da expressão “Ave Maria. Ave Maria. Ave
Maria”.
Por esse tempo conheci uma
senhora, já velhinha de mais de 80 anos, sem filhos nem companheiro, cuja falta
de cuidados com os recém-nascidos levou a enterrar oito anjinhos. Quando jovem, além de passar os dias trabalhando em
lavouras de senhores proprietários de terra, ela ainda dava escapulidas com os
companheiros de labuta, o que a fez parir constantemente sem condições materiais
para cuidar dos filhos. Diziam as conhecidas à boca miúda, que a amiga deixava
o recém-nascido na rede o dia inteiro enquanto trabalhava ou ia às brincadeiras
com os camaradas da roça. Ninguém para dar uma olhadinha, uma mamadeira ou um
chá ao pequeno. Em poucos dias, no máximo sete, quando a mãe retornava da roça
ou do rala-bucho, o bebê havia virado
anjo. E lá corriam as carpideiras a lamentar
o pequenino, ora dentro de um caixãozinho de madeira ordinária, ora sobre um
lençol estirado no chão batido com círios ao redor.
Apesar da tristeza que me
fazia perder o sono depois dos velórios aos quais sempre fazíamos questão de ir,
pois era um motivo para sairmos à noite, não deixei de admirar, e até hoje tentar
reproduzir em meus trabalhos manuais, a renda de papel seda branco que as
mulheres faziam para cobrir o caixão dos anjos.
Depois de vestirem o pequeno defunto com uma túnica branca de algodão,
enfeitavam-no com jasmins, também brancos, e por cima, em vez de véu, uma manta
de renda belíssima de papel.
Ana Barros
Ana Barros