sábado, 28 de dezembro de 2013
sábado, 21 de dezembro de 2013
FILHO DE CRONOS
Para Pedro Ivo
Desde que o céu e a terra disseram “sim”
E Cronos regurgitou seus filhos
A flor sem pétala cheiro e cor
Para sempre nasce
Para sempre morre
O tronco sem raiz sobe
O tronco sem raiz desce
No círculo que chora e goza
O éter sem fim rosa
Ana Barros
sexta-feira, 22 de novembro de 2013
O TOCA FITA
Chego com o meu rádio Sharp, várias fitas cassete
de Amado Batista, Roberto Carlos, Fábio Júnior, Reginaldo Rossi e todos que
falam o que eu não sei, ou finjo não saber, com as minhas buriladas palavras.
Chego de ônibus na cidade de uma rua só. O toca fita e a mochila cheia de
revistas Grande Hotel substituem o burburinho que você tanto odeia e que eu
insisto querer. E não raro saímos com o toca fita no ombro a curtir Bartô
Galeno no inferninho da praça onde pela primeira vez bebi cachaça e tive que
tomar banho na madrugada no quintal de sua casa e, se D. Maria sua mãe a tempo
não chegasse, adeus "cabaço"... Seu pai toca sanfona, sua mãe toca
colheres, você toca triângulo e canta que nem um camelô de feira onde se
convence na tapa. Mais tarde tudo cala... A sanfona, o triângulo as colheres na
lata: é hora de desligar o toca fita. Outro som começa no céu da boca.
Ana Barros
Ana Barros
quinta-feira, 10 de outubro de 2013
ONDE TAPERA É CASA
Uma das lições mais admiráveis do budismo é a
prática do desapego. Exercício que não é para qualquer um uma vez que requer do
espírito disciplina no contentamento com nada.
Um exemplo do quão difícil é desfazer-se das coisas materiais e atingir o nirvana é contemplar uma casa velha e abandonada.
Passamos por ela e lembramos que ali nascem, vivem, lutam e morrem gerações inteiras,
todas, direta ou indiretamente, com apego àquele imóvel que, querendo ou não, deixaram
para trás com a chegada da velhice, da civilização ou da morte.
Com o passar dos anos os donos também passam. São
outros os apegos e tradições e o velho verga-se para dar passagem ao novo. Este,
na ilusão de ser eterno, vira as costas ao passado moribundo de beira de
estrada ou dos fundões de alguma região, a qual é questão de tempo ser
descoberta por especuladores. Se não fosse assim não haveria os grandes centros
com suas torres de concreto batendo no céu como a esnobar dos mortos esquecidos
no monturo de demolição cá embaixo.
Duas vezes ao mês faço o mesmo percurso rumo ao sebo
Cafundó Café & Arte, em Jaçanã (RN), e passo em frente ao sítio de um tio
avô, Zé Casado, na comunidade Riacho Salgado, entre Santa Cruz e Coronel
Ezequiel (RN). Fico olhando pela janela do ônibus a tapera, cuja destruição se
aprofunda a cada dia e temo pelo desmoronamento total antes de registrar algumas
fotos do espólio. Mas graças à última viagem ter sido feita com meu irmão Deda Barros,
pude descer do carro e fotografar o imóvel de tio Zeca e de sua mulher Zefa,
falecidos de velhice em residência fixa na cidade. Os filhos, netos e bisneto
deixaram a propriedade para trás e foram também viver em centros urbanos. Hoje não
se sabe quem são os donos da terra com o casebre insistentemente de pé, pois
caminha para o seu segundo século mesmo com a estrutura capenga.
Quem conheceu a família que ali chegou, habitou e
construiu uma história de amor à terra, ao homem e aos pertences, isto é, de apego
do mundo, percebe que, apesar de tapera, aquele imóvel ainda é casa, haja vista
a memória ressuscitar o tempo.
Ana Barros
quinta-feira, 3 de outubro de 2013
AMULETO
Apesar
de toda tecnologia do mundo virtual e positivismo de um homem saturado de
ciência e objetos de consumo, através dos quais pensa viver no "melhor dos mundos", há uma
vivência paralela, à margem e bombardeada pelos fragmentos desorientados e às
vezes loucos que são jogados sobre quem vai passando ao largo. Para livrar-me
da descarga venenosa pensei: aonde buscar o antídoto? Noutro tempo, não muito
longe, procuraríamos o curandeiro, a benzedeira e a cartomante para os banhos
de sal grosso, de ervas, adivinhação do futuro e a promessa de cura com ramas
verdes, murchas à medida que iam surrando a imundície que emporcalhava
corpo e espírito. Porém hoje...
É bobagem achar que as coisas mudaram com a chegada das redes sociais, principalmente do Facebook, que nos dão a ilusão de que somos altamente bem informados e resolvidos, não carecendo mais de patuás nem de despachos em encruzilhadas, bastando para isso compartilhar com os amigos virtuais fotografias e informações nem sempre belas nem confiáveis. Pois bem, nunca se viu tanta mandinga, catimbó, patuá, pai de santo e terreiro como nos dias atuais.
Diante
de um tempo conceitual ao extremo, que apenas passa o dedo sobre a tela e o aparelho
vai fazendo e definindo tudo, cabe aqui a pergunta: para quê o místico se a
frieza da máquina nos salva das crises existenciais próprias de um romantismo cujos ídolos e mitos não só estão mortos como ultrapassados? Porém, a
realidade paralela à virtual diz que homens e mulheres continuam sentindo e sofrendo
igualmente a todos os seus antepassados, pois, apesar da sofisticação de hábitos cosmopolitas, cuja massificação dá a ilusão
de que todos são iguais, continuamos humanos, sozinhos, frágeis, doentes,
carentes e mortais.
Arrastada
pela onda que leva todos, até mesmo
os mais reacionários, me vi diante do artesão cabeludo da Praça Padre João
Maria, espaço famoso de Natal pela aura não só mística como também hippie dos
anos oitenta, pedindo socorro para que me ajudasse limpar o lixo que emaranhara-se na minha cabeça
ainda com fios de cabelo amarrados ao museu dos costumes. Com voz pausada de
guru baiano ele disse: "Você não deve olhar o lixo
de frente... não o encare jamais!” Sua ênfase lembrou o mito de Perseu na
versão de ítalo Calvino: “Para decepar a
cabeça da Medusa sem se deixar petrificar, Perseu se sustenta sobre o que há de
mais leve, as nuvens e o vento; e dirige o olhar para aquilo que só pode se
revelar por uma visão indireta, por uma imagem capturada no espelho”. Qual
é o seu signo, jovem?" "Libra", respondi. "A sua pedra é o
citrino, esta aqui." Mostrou-me um lindo amuleto pendurado num cordão
preto e o amarrou no meu braço contra os olhos do monstro que porventura viesse
em minha direção.
Gostei
da elegância do artefato preso acima do pulso, o que me fez chamar a atenção para a
mesma prática em corpos de crianças nordestinas e, bem recente, na cabeça de
meu neto Heitor que, por orientação de um remanescente da cultura africana, experimentou
o que foi comum em bebês para sobreviver às intempéries da natureza e à maldade
dos homens, estas, em tudo iguais umas às outras. Para isso, colava-se uma
trouxinha de alguma mistura semelhante à cera de abelha numa das mechas do
cabelo do pequeno ou amarrava-se o patuá num cordão e pendurava no bracinho ou
no pescoço do recém-nascido. Não sei se interferiu em alguma coisa na existência
de Heitor e dos demais meninos e meninas nordestinas. Sei apenas que continuo
com o meu amuleto preso ao braço em posição estratégica contra o mau-olhado.
Ana Barros
domingo, 29 de setembro de 2013
VELÓRIO DE ANJO
Há dias minhas lembranças,
que são por demais lá do cafundó, me fazem sentir vontade de escrever sobre um
assunto muito comum na minha infância de zona rural: o velório de anjo. Anjo porque criança morta é
símbolo da mais profunda piedade e elevação às alturas, sentimento comparado à
pureza de um anjo. E como foram muitos os meninos e meninas de morte prematura
àquela época de poucos recursos sanitários e consequente higiene precária! Nos
inúmeros velórios que fui na companhia de Tutu e de meus irmãos ouvi as
mulheres dizerem em voz baixa que a criança havia morrido de “mal do sétimo
dia”. Vim saber mais tarde que aquele diagnóstico popular era a simples e terrível
denominação do tétano, doença naquele tempo de falta da luz elétrica e de informação,
tão assustadora que, para pronunciá-la, dava-se três tapinhas na boca seguidas
da expressão “Ave Maria. Ave Maria. Ave
Maria”.
Por esse tempo conheci uma
senhora, já velhinha de mais de 80 anos, sem filhos nem companheiro, cuja falta
de cuidados com os recém-nascidos levou a enterrar oito anjinhos. Quando jovem, além de passar os dias trabalhando em
lavouras de senhores proprietários de terra, ela ainda dava escapulidas com os
companheiros de labuta, o que a fez parir constantemente sem condições materiais
para cuidar dos filhos. Diziam as conhecidas à boca miúda, que a amiga deixava
o recém-nascido na rede o dia inteiro enquanto trabalhava ou ia às brincadeiras
com os camaradas da roça. Ninguém para dar uma olhadinha, uma mamadeira ou um
chá ao pequeno. Em poucos dias, no máximo sete, quando a mãe retornava da roça
ou do rala-bucho, o bebê havia virado
anjo. E lá corriam as carpideiras a lamentar
o pequenino, ora dentro de um caixãozinho de madeira ordinária, ora sobre um
lençol estirado no chão batido com círios ao redor.
Apesar da tristeza que me
fazia perder o sono depois dos velórios aos quais sempre fazíamos questão de ir,
pois era um motivo para sairmos à noite, não deixei de admirar, e até hoje tentar
reproduzir em meus trabalhos manuais, a renda de papel seda branco que as
mulheres faziam para cobrir o caixão dos anjos.
Depois de vestirem o pequeno defunto com uma túnica branca de algodão,
enfeitavam-no com jasmins, também brancos, e por cima, em vez de véu, uma manta
de renda belíssima de papel.
Ana Barros
Ana Barros
Assinar:
Postagens (Atom)