O Senhor sabe que
tento... venho aqui todos os dias! Há pouco Padre Severino, que conhece desde
sempre a sombra dos meus pecados, aproximou a mão magra de minha cabeça e disse
“tenha fé, minha filha!” O que
peço é tão pouco... Senhor, não me olhe com essa cara! Quando caí àquela vez,
lembra? agarrei-me à Senhora de Cortona, mas o meu coração não acompanhou o
dela... Logo esqueci os juramentos à bondosa santa que, se quisesse, e não
tivesse experimentado como eu a agonia da carne, já teria me aniquilado com um
raio. Pois bem, naquele mesmo dia de arrependimento aos pés da santinha eu
acordei no quarto sujo e escuro aos gritos do homem que repetia “puta ladra
sem vergonha cadê o meu dinheiro?” Inda com a cabeça tonta de cachaça,
procurei as roupas jogadas no chão e saí correndo antes que a garrafa vazia
partisse a minha cabeça. Ao abrir a porta de casa dei de cara com Sua imagem
triste e benevolente pendurada na parede. Baixei
os olhos envergonha e chorei até perder as forças. Lembra quando eu
tinha quinze anos e João de Deus fez um menino em mim? Fui ao banheiro e lá
rasguei o sexto mandamento... Dez anos atrás das grades... Mas naquela manhã de
segunda-feira beijei todo mundo: eu estava livre... O capitão, homem bom, que
de vez em quando pedia para brincar de cavalinho com ele, perguntou se eu
queria um emprego em sua casa: “claro!”, respondi sem pestanejar. E
melhor escolha não poderia ser. Brinquei com o capitão todos os dias em que a
patroa saiu pra deixar as crianças na escola. As mulheres da vizinhança logo
perceberam e passaram a me odiar. Olegário era o vigia noturno do quarteirão e,
só de ouvir a mulher repetir que eu era uma vadia, que se afastasse de mim, se
não..., levou o homem me puxar para trás de uns arbustos até sermos
surpreendidos pela Ronda. Pra não ser expulsa da casa do capitão fui obrigada a
dar um passeio com os quatro policiais da viatura. Não vou dizer que foi
ruim... Mas como prova do meu arrependimento me entreguei à limpeza da casa com
a culpa de quem é vigiada aí de cima... Fiquei de molho o tempo
necessário para a carne voltar a ceder aos apelos que vêm de baixo... E
era sexta-feira, o pagode chegou aos meus ouvidos. Vesti a minissaia vermelha,
pintei a boca... “Cândida!” Era Zé Grandão. Segurava o cigarro com uma mão e com a outra torceu
um beliscão na minha bunda. Antes que eu gritasse ele tapou a minha boca com um
beijo molhado: “gostosa!...”, disse no meu ouvido. Entramos no baile...
Pediu duas pingas e bebemos de um trago. Repetimos várias doses... Dançamos
umas dez vezes “Ai se eu te pego”... O malandro foi me apertando, me
apertando, me apertando... até eu sentir que ia desmaiar... as pernas ficaram bambas... Zé Grandão me
puxou para trás da porta... Meus olhos reviravam quando alguém gritou “polícia!”.
Voltei pra casa coberta com um dos panos das mesas. Minha mãe dizia ter certeza
do meu futuro de artista, só porque eu gostava de desenhar florzinha no papel
do pão. Morreu sem conhecer o meu futuro… rezo pra ela uma Ave Maria com
o fervor de puta arrependida: “Ave Maria cheia de graça"... mal começo
escuto chamar: “Candinha...”, era seu Emanuel... Me convidava para
conhecer “a casa do Senhor” e, quem sabe, “ser a mais nova de suas
ovelhas”. Pensei: “o Senhor cuida de mim... veio bater minha porta justo
hoje...”. Beijei as mãos de seu
Emanuel com a devoção de filha. Ajustei o vestido cor de abóbora, presente de
Angélica, filha do capitão. "Quero ver você na missa com ele!”,
disse ela com a voz amolecida de quem conhece a estética solar das putas. Aliás,
havia entre mim e ela algo de irmandade nos olhos... Várias vezes vi a afilhada da minha protetora entrar
na ponta dos pés em seu quarto enquanto todos dormiam. Senhor... não franza a
testa assim... Estou só repetindo o que é sabido aí em cima... Pois bem,
não fui à missa naquele dia como queria a filha do capitão, mas ao culto com
seu Emanuel. A igreja estava vazia e o silêncio profundo me afastou
completamente do mundo. As portas e janelas estavam fechadas. Éramos os únicos
ali entregues à atmosfera divina. Ajoelhei e coloquei a cabeça entre as mãos.
Lamentei em voz alta. Depois de gritar e chorar de braços erguidos para o céu
abri os olhos e vi que alguém se aproximava... Era seu Emanuel. Estava nu e me
agarrou sem que eu resistisse. Trepamos debaixo da tristeza do altar. O culto
já ia começar... Os fiéis com suas crianças barulhentas se agitavam na calçada.
Nesse momento, pastor Emanuel, percebendo o avançado da hora e o perigo de
sermos descobertos, gozou sem esperar por mim. Vestiu a roupa às pressas,
escancarou portas e janelas e começou a me bater no rosto e a gritar para
todos: “abandone este pobre corpo, Satanás. Volte para o inferno!”. “Irmãos”,
continuou, “invoquemos ao Senhor eliminar o mal que se apoderou desta
infeliz”, disse e chamou todos para auxiliar na missão. Não desconfiavam
eles que o diabo estava ali e tinha as virilhas molhadas com o meu suor.
Cheirassem o irmão Emanuel e saberiam que o capeta era real e não fedia
a enxofre, mas às minhas entranhas. Depois de apanhar para expulsar o mal,
alguns irmãos piedosos me levaram para fora do templo e me deixaram na
calçada sob o olhar seco e impiedoso das irmãs que escondiam os filhos
pequenos nas dobras das saias. Arrastei-me até a beirada do muro onde me apoiei
e pude ouvir os irmãos repetirem diante do pastor ajoelhado: “glória
a Deus! Aleluia! Aleluia! Aleluia!”. Corri até aqui e prometi à Senhora de
Cortona nunca mais sair a não ser para o trabalho na casa do capitão. Porém, já
tinha se passado duas semanas e Lourdes, a vizinha, me convidou para irmos ao
piquenique na Praia do Amor. Vi que estava branca como leite. "O que
faço: vou ou não vou?”
Me lembrei da promessa..., mas a minha pele estava tão branca... Lembrei ainda
do biquíni verde-limão ainda no saco... “Vou!!!” Arrumei a cesta com
pães, frutas, carne assada, cigarros e a garrafa de pinga. Abri o bauzinho e
escolhi as bijuterias da cor do sol, combinavam com o biquíni. Arrumei o
arranjo do chapéu... “é sex”, disse um dia Joel, meu primeiro namorado,
quando mentimos dizendo que íamos à missa, mas, na verdade, e o Senhor sabe...
fomos fazer aquilo no monte de capim do curral. “Por que Joel agora?”
“Ora essa!” Abri a mochila e arrumei bem apertadinho o óleo de urucum com
amoníaco, deixava os pelos dos braços louros, a garrafa de pinga, o batom
vermelho, o maço de Derby e a caixa de fósforos. Raspei-me toda. Às quatro da manhã o despertador alarmou, mas eu já
estava de pé desde as duas. “Cândida!”, gritou Lourdes do outro lado do
muro, “o ônibus chegou, apresse!”. Olhei-me no espelho pela última vez e
gostei da imagem: short rosa ligadinho deixando o fio dental à mostra, tamancos
verdes, chapéu com arranjo de flores... “está sex”, diria Joel.
Acomodei-me com Lourdes no fundo do ônibus. A turma começou a batucar, tomar
umas e beliscar minha bunda. Cantei, dancei, bebi, fui beliscada... quase perdi
a voz. Fomos os primeiros a chegar. Procuramos a sombra de uma árvore e
acomodamos as mochilas e as cestas com a comida. O mar num vaivém de ondas
selvagens parecia existir só para aumentar o meu fogo. Percebi que todos haviam
corrido para a água e eu estava completamente só entre coqueiros e pedras.
Respirei o cheiro de ostras frescas... Joel dizia ser igual o meu... Por fim,
tirei o short e a blusa e estirei-me na toalha vermelha. “Ah se Lourdes
estivesse aqui pra passar o óleo...”. Porém, mal fechei os olhos de prazer
quando senti a mão violenta rasgar o meu biquíni. Dei um pulo, fiquei em pé.
Foi aí que vi Antônio do Terço pronto pra imobilizar-me. Ele era o beato
responsável pelas rezas e passeios como aquele. Viera todo o caminho rezando
com a mulher e a filha sem levantar os olhos das contas que deslizava entre os
dedos sebosos que agora ele enfiava na minha boceta. Jogou-me no chão e trepou
nas minhas ancas já entregues. Mas quando íamos gritar de prazer apareceram do
nada a mulher e a filha. Partiram pra cima de mim e me bateram com murros e
pedras. Os companheiros do piquenique, inclusive Lourdes, me abandonaram
desmaiada e nua... “Oh, Senhor, piedade!...”
Ana
Barros
18 de fevereiro de 2012 (reescrito em 28 de maio de 2021).