quarta-feira, 11 de março de 2020

Noturnos


Os amigos conversam em meio a doses de aguardente e café na grande mesa retangular. Conversam e riem como se de um momento para o outro o defunto fosse soltar a gargalhada engasgada da saliva escura de tabaco mascado. Gargalhada de fumante bonachão e gozador que era. Ninguém ali se livrou das brincadeiras do velho senhor alto, magro e sempre a pedalar a bicicleta na direção da chácara onde cansava o corpo e revigorava o espírito nalgum buraco de terra. Num canto da sala, afastados dos demais, estão dois homens que tentei o dia todo, sem sucesso, encontrar no meio das rodas que se formaram da sala ao quintal. Os dois camaradas do meu avô vieram ao último encontro. Pareciam ter morrido com ele, tamanha a tristeza em seus rostos magros. 

Fui o neto mais próximo do meu avô, apesar de seu amor ser claramente dos netos que vinham apenas uma vez no ano embolsar a mesada, fruto da colheita feita pelos colonos e por mim, que ficava de fora do rateio por “não merecer”, uma vez que, diferente dos primos, eu havia me beneficiado das regalias da mesa, sentenciava meu avô. Sempre aceitei a decisão sem reclamar. Não escolhi estar ali por dinheiro e sim pelos esconderijos que encontrei longe da casa dos meus pais. Ensimesmado e sempre a andar pensativo no entorno da propriedade eu estava longe de ser querido por avós que limpavam a culpa da má consciência na ausência no desregramento dos netos. Aquela aproximação só teve um lado, o meu. Uma aproximação enviesada, tímida, olfativa,  em que mais contavam os cheiros, os espaços vazios, os movimentos involuntários, os recantos escondidos, as nuanças captadas pela mente aguda de um menino que, educado sem os mimos dos pais nem o carinho dos irmãos mais velhos, passa então a afiar a astúcia sensorial. Foi na casa do meu avô que encontrei os elementos necessários às especulações com as quais escrevi três livros de poemas. Com a imaginação estendida no entorno da casa dos meus avós tornei-me um homem perturbado pelos segredos alheios, que, involuntariamente, chegavam até mim. Foi aí que compreendi a relação sensual e religiosa do meu avô com a existência. Gostei do que vi. Era diferente da vida na cidade. Contemplei mais uma vez o rosto sereno e duro que dormia para sempre. Deixei-me levar aos dias em que vi os dois amigos que velavam meu avô juntar-se a ele na sala de luz nublada pela névoa de fumaça dos cachimbos.

A escuridão é quebrada pela chama mortiça do candeeiro e dos cachimbos que soltam um cheiro embriagador. Muitas vezes fumei cigarros feitos de fumo picado pelo meu avô e vomitei bêbado. Assim, condicionado a fumar, cuspir e vomitar tornei-me viciado em tabaco. Gostava particularmente do efeito da nuvem da fumaça saída dos cachimbos dos três amigos, cuja imagem sombria àquela hora da noite dava à sala um quê de mistério, um quê de coisa escondida, um quê do domínio de homens orgulhosos. Na sala retangular com dois bancos de madeira rústicos, um de cada lado da parede, as horas pareciam congeladas diante do aspecto estático e solene dos três. Às vezes pareciam cochilar. Mas logo a tosse gorda do fumo mastigado quebrava o silêncio pesado da madrugada. Era comum chegar à meia noite sem que os amigos dessem sinal de partida. Na completa entrega às baforadas e às xícaras de café preto, sequer lembravam que dali a algumas horas estariam de pé para dar continuidade ao serviço cuja importância era o assunto recorrente nas poucas falas entre os três: Preço do milho, preço da saca de farinha, previsão de chuvas para o próximo ano, aquisição de mantimentos... Orgulhava-me do meu avô por ser ele o dono daquela planície na qual todos os anos, chovesse ou não, plantávamos os grãos da nossa alimentação diária. As brincadeiras das férias nunca foram outras senão jogar pedras no poço de pedra centenário para ouvir o eco de sino, fumar, tanger o jumento carregado ora com mandiocas, ora com lenhas, ora com barris cheios da água apanhada na lagoa que se formava no período das chuvas, jogar as sementes na cova aberta, cobri-las com a areia fofa e úmida que deixava meus pés enegrecidos e cravados de espinhos. Voltava à escola com os dedos gretados e as unhas duras de barro branco. Fazia questão que fosse assim. Exibia os ferimentos e a sujeira como troféu aos colegas de uniforme e unhas limpas de acordo com o manual da escola. Graças ao relaxamento dos adultos tive a liberdade de ir à escola como bem quisesse. Exibia o meu desregramento como poder.

Aprendi com meu avô prestar atenção ao tempo e usá-lo para pendurar-me na preguiça que ele, o tempo, dá àquele que ama o devaneio. Errava quem pensasse ser de tédio os momentos silenciosos passados pelo meu avô na cadeira de frente para a estrada, de onde vinham as mulas carregadas de mantimentos. Eram finais de tarde entregues ao ócio, direito adquirido pela dedicação radical ao trabalho. Seus olhos falavam com o nada, falavam com a ausência de motivo, apesar de ser ele o motivo e a ação a brincar com o tempo naquele chão. Afora o encanto por aquele velho, que despertara em mim a vontade de ter vontade  mesmo quando deixava de plantar o milho e entregava o terreno às belas cebolas-brabas, foi na casa de farinha que senti os primeiros latejos sexuais. Lá ouvi as primeiras conversas sobre sexo e tomei gosto pelas crônicas depravadas das mulheres. Elas me consideravam um menino tolo e davam vazão a uma sexualidade sem peias. Mais tarde compreendi por que as mulheres da casa do meu avô as qualificavam de “putas”. Eram mulheres  contratadas por alguns centavos, e um prato de feijão com carnes, para descascar os tubérculos e moê-los no motor adaptado de algum veículo abandonado no ferro velho. Havia entre elas uma competição para ver quem desmanchava mais mandiocas nas serras amoladas. “O que ganha a vencedora...? Um bolo de massa pro café da manhã”, cantava Matilde, a rainha do serrote, como ficou conhecida por seus braços roliços e ágeis no manuseio das raízes tantas vezes exibidas por ela como grandes falos. Aquelas mulheres não eram iguais às mulheres da casa do meu avô. Elas não tinham uma vida de prazeres escondidos e outra, recatada, para exibir ao mundo das convenções. As mulheres da casa de farinha não eram casadas, não iam à igreja, não tinham medo do diabo, tampouco de Deus. Gostavam de pinga e, aqui acolá, baixavam no terreiro de Vicente para encomendar uma “amarração”. “Catimbozeiro sem vergonha”, dizia minha tia mais velha sobre o velho pai de santo.  Ao mesmo tempo em que riam dos “cafajestes,” narravam com palavrões e risos as “trepadas” com aqueles homens sem a menor preocupação em jogar nelas as suas sementes. “Ai, como dei ontem a Zé do Caroço…”, disse Josefina revirando os olhos e abraçada a uma longa e grossa raiz. Referia-se à noite passada com o forneiro que adquirira um gânglio na axila direita pela pressão do rodo. O hábito pedrou a carne e ele virou Zé do Caroço.  Não raro, cada filho tinha um pai diferente. Ouvi muitas vezes minha avó contar a história de Jacinta, que morreu solteira quando já passava dos 80. Jacina, segundo a narrativa repetida como lição de moral nas rodas de conversas em que minha avó fazia questão de aparecer, tivera oito filhos de oito amantes.  Deixara os bebês morrer de fome no fundo da rede, pois, nem bem murchava a barriga, voltava à lida nalgum campo de roça e, sem demora, a deitar de novo no paiol do sótão apelidado de cama dos gatos.

Na época das farinhadas meu avô conduzia as filhas, a esposa e eu à casa de farinha logo terminado o jantar. Era o lazer das mulheres depois de um dia entregue ao fogão e a lavar panelas. Lá ficávamos na penumbra das lamparinas até às 21 horas. Eu, calado, via e ouvia tudo com prazer e atenção naquele ambiente silencioso e dissimulado, diferente do ambiente matinal das raspadeiras sem travas na língua e no sexo. Minhas tias namoram dois rapazes que chegam sem que meu avô perceba. Sentam próximo ao monte de mandiocas e ali ficam, semi-escondidos. Fingem raspar os tubérculos enquanto a mão escorrega para debaixo das saias das moças. Elas riem baixinho enquanto a mãe cochila na rede armada no alpendre e o pai fuma o cachimbo de costas para os casais. A ele interessa que as moças casem seja lá com quem for. As duas haviam já passado dos 30 e ele não gostava da ideia de mantê-las solteiras. Tinha atitudes pragmáticas tanto na vida familiar, casar as filhas para economizar nas despesas da casa, quanto nos negócios: “Francisco, tem mandioca para amanhã de manhã?”, ele me pergunta sem tirar o cachimbo da boca. “Tem”, respondo sem tirar os olhos do homem nu da cintura para cima, calças arregaçadas à altura dos joelhos e descalço, que anda de um lado para o outro na calçada comprida e estreita com o rodo gigante na mão. Vaivém maquinal do cozimento da farinha no fogo à lenha. É pago para torrar no correr da noite cem quilos. Meu avô vigia a qualidade do produto. Retira-se só quando tem certeza das previsões para aquela noite. Terminada a primeira fornada abro a boca do saco e o forneiro joga as cuias contadas por meu avô ali dentro. Faz uma média rudimentar e conclui com exatidão o número de sacas produzidas até o nascer do dia, quando o trabalhador abandona o serviço levando com ele três cuias de farinha como pagamento pelo serviço. 

A escuridão do pequeno trajeto entre a casa de farinha e o casarão dava-me a certeza de ver formas estranhas se moverem debaixo das árvores. Era só clarear para eu correr àquele ponto do caminho em que ainda vive o grande pé de jacas. Nada além dos galhos, raízes e formigas eu encontrava. O prazer secreto de falar com o desconhecido na escuridão da estradinha me fez retornar ao casarão de meus avós em períodos de férias escolares por anos seguidos. Sonhava com o momento em que abandonaria livros e cadernos e corria ao sítio mais curioso e com rendimento escolar medíocre. No lugar dos conceitos e cálculos, o obscuro, o não dito. Estabeleci a técnica de estudar as pessoas ao meu redor com todos os sentidos afiados e a malícia dos meninos solitários. Pois bem, foi assim que me dei conta de que observava três velhos na sala iluminada por lamparinas e brasas de cachimbos. 

O trabalho começa as sete e vai até às dezessete. Uma bacia de ágata branca com água limpa espera meu avô, que encosta a enxada à parede, tira o chapéu, a camisa suada, arregaça as pernas das calças até os joelhos e, sentado no umbral da porta da cozinha, lava os pés, os braços e o rosto. Permanece ali alguns instantes. Contempla o crepúsculo e entrega-se ao espetáculo melancólico do fim. Aquele velho sólido e grato representa as palavras empoladas do locutor que dramatiza no rádio A Hora do Ângelus: “Ave Maria! Hora da prece e do perdão!...” Chega dezembro com as férias escolares e o fim da lida na terra. À Ave Maria chorada com os raios do sol cansado, meu avô escolhe a rede armada no alpendre e ali se balança até o momento em que vê os dois amigos aparecem. As visitas continuam até a chegada das chuvas, esperadas entre janeiro e março, quando começa o plantio e alguns meses depois, outra vez, colheita e farinhadas. Havia entre os três homens o tempo de suar na esfrega da terra e outro para compartilhar algo cujo silêncio atiçava a minha imaginação com possíveis e impossíveis possibilidades. Era o silêncio do meu avô e de seus dois amigos naquele período de ócio motivo que tirava meu sono e me levava a escrever páginas e páginas a adivinhar o que eles diziam sem falar. Por várias vezes tentei colar o ouvido à porta do quarto, que dava para a sala de visitas, na tentativa de ouvir o que os três. Jamais captei algo inteligível capaz de confirmar as minhas especulações. Era o mesmo ritual: cumprimentavam-se tirando o chapéu, sem o aperto de mãos, enchiam os cachimbos com o fumo picado sobre a tábua da mesa, acendia-os com a luz da lamparina e acomodavam-se nos bancos rústicos. Minha tia mais velha aparecia bocejando em sua última obrigação do dia. Trazia o bule de café e as xícaras de porcelana encardida. Deixava-os sobre a mesa e só recolhia no dia seguinte. Após ter certeza de que ela não voltaria, levantava-me na ponta dos pés e observava os três pela porta entreaberta. Passei minha infância na expectativa de descobrir o que eles pensavam ao chupar os cachimbos, soltar a fumaça pela boca relaxada com olhos baços de quem entrava em contato com um mundo diferente daquele que desaparecia com a noite. A luz da lamparina decorava a ampla sala com as sombras das figuras solitárias refletidas na parede branca. Fumavam, fumavam, fumavam... Minha avó tossia aqui acolá sob o efeito da nuvem que chegava até ela pelas frestas da porta. Diziam alguma banalidade a respeito dos acontecimentos do dia. Calavam. Fumavam, fumavam, fumavam... O silêncio aprofundava mais e mais na quietude da noite. Toda a casa dormia, menos eu. Os trabalhadores dormiam. Mas os três homens não tinham sono. Desperto com a inalação do tabaco eu não perdia um só movimento dos três. “Será um ritual?”, penso ao lembrar as histórias de lobisomem que as raspadeiras contavam. Cheguei mesmo a ter certeza de que meu avô e os dois amigos eram os personagens nunca conhecidos daquelas fábulas. As mulheres se referiam aos lobisomens com o mesmo erotismo com que falavam dos amantes. As descrições dos personagens com seus cachimbos cheios de fumo reunidos à meia noite atrás da casa de farinha levavam aos três homens que,  nessa hora exata, levantavam-se e meu avô os seguia na escuridão. Voltando sozinho algum tempo depois. Exalava não mais o odor de tabaco, mas o mesmo cheiro do suor de Teresa, que ajudava na cozinha. “Mas... será que eles não se reúnem para pensar como eu faço debaixo da jaqueira?”, considerei. Porém não, eles não eram assombrações, tampouco poetas... Eram homens sólidos, sensuais, inteiros como a própria existência. Devotos dos santos e tementes a um Deus a quem amavam através dos fenômenos. Jamais souberam o que era um espírito perturbado, daqueles que, aqui acolá, o padre era chamado para acalmar. Plano e simples como os campos de mandioca, assim eu compreendi o espírito dos três companheiros noturnos cuja devoção às sombras da noite era a mesma com a qual aravam ao sol. Dia e noite eram apenas claro e escuro, som e silêncio de uma natureza que, diferente dos homens, trabalhava feliz e sem descanso. E foi assim que a intransigência de rapaz me levou à certeza de ter encontrado o real sentido daquelas reuniões entregues a longas e solitárias baforadas.  Enfim afirmei nas páginas do caderno que os três velhos se encontravam regularmente para quebrar a imposição do tempo, pois sabiam haver algo escondido nos recantos da escuridão, nos sussurros e nos silêncios profundos que falava com eles, só com eles, seres iguais à vontade indiferente ao relógio. Mas este tirano do tempo contado lembra, “meia noite!”. No começo não gostava do cheiro forte do fumo picado. Certa vez, quase sufoquei e, graças à resistência dos pulmões não tossi livrando-me assim de ser descoberto pelos fumantes que pareciam escrutar alguma coisa que vinha dos alpendres, do vento frio, da escuridão, das árvores gemendo no aconchego sensual dos galhos. O peso da névoa de fumaça afastava do ambiente qualquer pretensão ao transporte místico dos que combatem o cansaço enrolando-se no cobertor macio da oração. Agora, ao observar os dedos amarelos de nicotina e os bigodes queimados dos dois amigos que choram a morte do meu avô, que tem também os bigodes queimados e os dedos amarelos de nicotina, abandono as  certezas de rapaz e passo a ter a certeza de que os três amigos se reuniam na sala nublada de tédio só pelo prazer efêmero de nascer com o dia.

O relógio bate quatro horas. Os dois tossem, assuam o nariz e tomam o café frio. A chama das velas expira. Meu avô não vai mais se levantar do banco para acompanhá-los à saída. Todos dormem. Os velhos vão à janela e olham o começo da agitação. A sala está vazia e os amigos podem se despedir. Sentam-se ao lado do caixão, acendem os cachimbos, dão várias e longas baforadas. O fumo vira cinzas com a noite e os dois se espreguiçam, vestem os casacos, repõem o chapéu e abandonam o morto. (Ana Barros)
Foto: Fernando Mourão Gutiérrez (domínio do Google)







terça-feira, 3 de março de 2020

Bom Ar


Acabo de deixar a prisão. Três anos atrás das grades por tentar matar uma mulher. Paguei completa e exemplarmente a pena. Porém, faria tudo outra vez se hoje ainda fosse um homem divido entre dois cheiros. Pois bem, naquele dia vesti a roupa mais adequada. Borrifei o perfume economizado para momentos como aquele. Pelo efeito que se daria adiante, considero que, como sempre fizera, tentava esconder com a fragrância comprada na loja o meu verdadeiro cheiro. Olhei-me no espelho e aprovei o conjunto: era um homem bonito. Tinha trabalho e um plano de saúde, ambos modestos. Tomei o ônibus uma hora antes da consulta. Sofria de ansiedade e fadiga. Quarenta minutos depois estava de frente ao prédio luxuoso. Os vidros escuros ofuscaram meus olhos: “como entrar aqui?”, pensei preocupado diante da imponência da clínica. Demorei alguns minutos procurando a campainha. Desesperado pelo adiantado da hora bati forte nos vidros. Logo a atendente apareceu. “O Senhor vai quebrar a porta? Não viu o interfone?” “Vi não, moça... Onde está?” “Aí, do seu lado”, apontou ela mal humorada. Aquilo era novo e inacessível para mim, que só conhecia a cigarra estridente do ônibus. Logo a atendente preencheu a ficha do paciente e me anunciou: “Miguel Ângelo, sala 03!”. Ao entrar na sala 03 quase perdi o fôlego. Ela era a cópia de uma das celebridades que via à noite na TV, bela, jovem e, como a apresentadora repete para as mulheres da plateia, “empoderada”. Não apertou a minha mão. Pediu que sentasse na cadeira longe dela o suficiente para indicar o seu e o meu lugar, este, compreendido naquele dia. Ainda assim, deu para sentir o perfume doce e caro que saia dela. Pensei no meu, forte e ordinário. Duas molduras sobre a mesa justificavam a sua felicidade. Tinha marido e um casal de filhos adolescentes. Passeavam em lugares que eu só conhecia das revistas que folheava no banheiro da escola. “Então, o que traz o senhor aqui?”, ela perguntou empinando o nariz com impaciência. “Sou ansioso e cansado”, eu disse. “Academia e mudança na alimentação”, disse apertando o botão da impressora. “Em que trabalha?” “Sou professor.” “Ah...”, ela acrescentou arqueando um dos olhos e o lábio superior. “Bem, o senhor vai tomar estas vitaminas e matricular-se na academia. Temos os dois aqui”. “Quanto custa o tratamento completo, doutora?”, quis saber. “A vitamina, que vem dos Estados Unidos, custa R$ 300. A academia, R$ 250”, disse entregando-me duas folhas impressas com as taxas do laboratório. Pensei: “R$ 250 do plano de saúde, mais 300 da vitamina, mais 250 da academia igual a R$ 800...” “Não tem um tratamento mais em conta, doutora?”, perguntei angustiado. “Sim, tem!”, ela disse estirando o pescoço e fitando-me com aqueles olhos arregalados da cor de violeta. “Procure o Posto de Saúde, lá eles têm o acompanhamento adequado para o senhor.” “Mas eu pago um plano de saúde para não ir ao Posto de Saúde”, argumentei humilhado. “O senhor sabe quanto eu ganho por uma consulta deste nível?” “Não!”, respondi. “Pois bem, a partir de hoje estarei me desligando do seu plano de saúde. Só me traz aborrecimentos e perda de tempo”, disse chamando a atendente no interfone: “traga o Bom Ar!”. A moça entrou agitada e borrifou o ambiente. Cheirei ao redor de mim, cheirei as axilas, a camisa... Estaria fedendo? Porém o pior aconteceu quando a atendente, obedecendo a um gesto sutil da mão da médica, desinfetou os meus pés. Foi aí que, cego de ódio, pulei sobre aquele pescoço arrogante e apertei-o até ela defecar. “Pronto, doutora, agora sim esse é o seu verdadeiro cheiro!” A polícia apareceu de repente e me levou algemado.

Há quanto tempo não pegava o ônibus. Sentei no banco ao lado da moça com uniforme. Era ela, a atendente. Devido estar de olhos fechados não me reconhecera. Porém fungou três vezes dando sinal de que alguém fedia. Eu havia ocupado o último assento disponível naquele ônibus lotado, ali, perto dela. Mais de uma hora levaria para chegar ao meu destino. Ah, a atendente morava no mesmo bairro que eu. Pois bem, a moça estava tão cansada que adormeceu deixando pender a cabeça sobre o meu ombro. Observei que ela tinha os sapatos gastos e Cheirava a Bom Ar. Os cabelos, roçando o meu nariz, constrangiam com dois dedos de fios brancos e pixains crescidos na raiz. A minha parada era a próxima. Tomei os cuidados necessários para não acordá-la e aconcheguei sua cabeça no casaco que trouxera do cárcere.


Ana Barros                  
Natal, 19 de fevereiro de 2020.