Os amigos conversam em meio a doses de
aguardente e café na grande mesa retangular. Conversam e riem como se de um
momento para o outro o defunto fosse soltar a gargalhada engasgada da saliva
escura de tabaco mascado. Gargalhada de fumante bonachão e gozador que era.
Ninguém ali se livrou das brincadeiras do velho senhor alto, magro e sempre a
pedalar a bicicleta na direção da chácara onde cansava o corpo e revigorava o
espírito nalgum buraco de terra. Num canto da sala, afastados dos demais, estão
dois homens que tentei o dia todo, sem sucesso, encontrar no meio das rodas que
se formaram da sala ao quintal. Os dois camaradas do meu avô vieram ao último
encontro. Pareciam ter morrido com ele, tamanha a tristeza em seus rostos
magros.
Fui o neto mais próximo do meu avô,
apesar de seu amor ser claramente dos netos que vinham apenas uma vez no ano
embolsar a mesada, fruto da colheita feita pelos colonos e por mim, que ficava
de fora do rateio por “não merecer”, uma vez que, diferente dos primos,
eu havia me beneficiado das regalias da mesa, sentenciava meu avô. Sempre
aceitei a decisão sem reclamar. Não escolhi estar ali por dinheiro e sim pelos esconderijos que encontrei longe da casa
dos meus pais. Ensimesmado e sempre a andar pensativo no entorno da propriedade
eu estava longe de ser querido por avós que limpavam a culpa da má consciência
na ausência no desregramento dos netos. Aquela aproximação só teve um lado, o
meu. Uma aproximação enviesada, tímida, olfativa, em que mais contavam os
cheiros, os espaços vazios, os movimentos involuntários, os recantos
escondidos, as nuanças captadas pela mente aguda de um menino que, educado sem
os mimos dos pais nem o carinho dos irmãos mais velhos, passa então a afiar a astúcia
sensorial. Foi na casa do meu avô que encontrei os elementos necessários
às especulações com as quais escrevi três livros de poemas. Com a imaginação
estendida no entorno da casa dos meus avós tornei-me um homem perturbado pelos
segredos alheios, que, involuntariamente, chegavam até mim. Foi aí que compreendi
a relação sensual e religiosa do meu avô com a existência. Gostei do que vi. Era
diferente da vida na cidade. Contemplei mais uma vez o rosto sereno e duro que
dormia para sempre. Deixei-me levar aos dias em que vi os dois amigos que
velavam meu avô juntar-se a ele na sala de luz nublada pela névoa de fumaça dos
cachimbos.
A escuridão é quebrada pela chama
mortiça do candeeiro e dos cachimbos que soltam um cheiro embriagador. Muitas
vezes fumei cigarros feitos de fumo picado pelo meu avô e vomitei bêbado.
Assim, condicionado a fumar, cuspir e vomitar tornei-me viciado em tabaco.
Gostava particularmente do efeito da nuvem da fumaça saída dos cachimbos dos
três amigos, cuja imagem sombria àquela hora da noite dava à sala um quê de
mistério, um quê de coisa escondida, um quê do domínio de homens orgulhosos. Na
sala retangular com dois bancos de madeira rústicos, um de cada lado da parede,
as horas pareciam congeladas diante do aspecto estático e solene dos três. Às
vezes pareciam cochilar. Mas logo a tosse gorda do fumo mastigado quebrava o
silêncio pesado da madrugada. Era comum chegar à meia noite sem que os amigos
dessem sinal de partida. Na completa entrega às baforadas e às xícaras de café
preto, sequer lembravam que dali a algumas horas estariam de pé para dar
continuidade ao serviço cuja importância era o assunto recorrente nas poucas
falas entre os três: Preço do milho, preço da saca de farinha, previsão de
chuvas para o próximo ano, aquisição de mantimentos... Orgulhava-me do meu avô
por ser ele o dono daquela planície na qual todos os anos, chovesse ou não,
plantávamos os grãos da nossa alimentação diária. As brincadeiras das férias
nunca foram outras senão jogar pedras no poço de pedra centenário para ouvir o
eco de sino, fumar, tanger o jumento carregado ora com mandiocas, ora com
lenhas, ora com barris cheios da água apanhada na lagoa que se formava no
período das chuvas, jogar as sementes na cova aberta, cobri-las com a areia
fofa e úmida que deixava meus pés enegrecidos e cravados de espinhos. Voltava à
escola com os dedos gretados e as unhas duras de barro branco. Fazia questão
que fosse assim. Exibia os ferimentos e a sujeira como troféu aos colegas de
uniforme e unhas limpas de acordo com o manual da escola. Graças ao relaxamento
dos adultos tive a liberdade de ir à escola como bem quisesse. Exibia o meu desregramento como poder.
Aprendi com meu avô prestar atenção ao
tempo e usá-lo para pendurar-me na preguiça que ele, o tempo, dá àquele que ama
o devaneio. Errava quem pensasse ser de tédio os momentos silenciosos passados pelo
meu avô na cadeira de frente para a estrada, de onde vinham as mulas carregadas
de mantimentos. Eram finais de tarde entregues ao ócio, direito adquirido pela
dedicação radical ao trabalho. Seus olhos falavam com o nada, falavam com a
ausência de motivo, apesar de ser ele o motivo e a ação a brincar com o tempo
naquele chão. Afora o encanto por aquele velho, que despertara em mim a vontade
de ter vontade mesmo quando deixava de plantar o milho e entregava o
terreno às belas cebolas-brabas, foi
na casa de farinha que senti os primeiros latejos sexuais. Lá ouvi as primeiras
conversas sobre sexo e tomei gosto pelas crônicas depravadas das mulheres. Elas me consideravam um menino tolo e davam vazão a uma sexualidade sem
peias. Mais tarde compreendi por que as mulheres da casa do meu avô as
qualificavam de “putas”. Eram mulheres contratadas por
alguns centavos, e um prato de feijão com carnes, para descascar os tubérculos
e moê-los no motor adaptado de algum veículo abandonado no ferro velho. Havia
entre elas uma competição para ver quem desmanchava mais mandiocas nas serras
amoladas. “O que ganha a vencedora...? Um bolo de massa pro café da
manhã”, cantava Matilde, a rainha do serrote, como ficou conhecida por seus
braços roliços e ágeis no manuseio das raízes tantas vezes exibidas por ela
como grandes falos. Aquelas mulheres não eram iguais às mulheres da casa do meu
avô. Elas não tinham uma vida de prazeres escondidos e outra, recatada, para
exibir ao mundo das convenções. As mulheres da casa de farinha não eram
casadas, não iam à igreja, não tinham medo do diabo, tampouco de Deus. Gostavam
de pinga e, aqui acolá, baixavam no terreiro de Vicente para encomendar
uma “amarração”. “Catimbozeiro sem
vergonha”, dizia minha tia mais velha sobre o velho pai de santo. Ao
mesmo tempo em que riam dos “cafajestes,” narravam com palavrões e risos
as “trepadas” com aqueles homens sem a menor preocupação em jogar nelas
as suas sementes. “Ai, como dei
ontem a Zé do Caroço…”, disse Josefina revirando os olhos e abraçada a uma
longa e grossa raiz. Referia-se à noite passada com o forneiro que adquirira um
gânglio na axila direita pela pressão do rodo. O hábito pedrou a carne e ele virou Zé
do Caroço. Não raro, cada filho tinha um pai diferente. Ouvi muitas
vezes minha avó contar a história de Jacinta, que morreu solteira quando já
passava dos 80. Jacina, segundo a narrativa repetida como lição de moral nas
rodas de conversas em que minha avó fazia questão de aparecer, tivera oito
filhos de oito amantes. Deixara os bebês morrer de fome no fundo da rede,
pois, nem bem murchava a barriga, voltava à lida nalgum campo de roça e,
sem demora, a deitar de novo no paiol do sótão apelidado de cama dos gatos.
Na época das farinhadas meu avô
conduzia as filhas, a esposa e eu à casa de farinha logo
terminado o jantar. Era o lazer das mulheres depois de um dia entregue ao fogão
e a lavar panelas. Lá ficávamos na penumbra das lamparinas até às 21 horas. Eu,
calado, via e ouvia tudo com prazer e atenção naquele ambiente silencioso e
dissimulado, diferente do ambiente matinal das raspadeiras sem travas na língua
e no sexo. Minhas tias namoram dois rapazes que chegam sem que meu avô perceba.
Sentam próximo ao monte de mandiocas e ali ficam, semi-escondidos. Fingem
raspar os tubérculos enquanto a mão escorrega para debaixo das saias das moças.
Elas riem baixinho enquanto a mãe cochila na rede armada no alpendre e o pai fuma
o cachimbo de costas para os casais. A ele interessa que as moças casem seja lá
com quem for. As duas haviam já passado dos 30 e ele não gostava da ideia de
mantê-las solteiras. Tinha atitudes pragmáticas tanto na vida familiar, casar
as filhas para economizar nas despesas da casa, quanto nos negócios: “Francisco,
tem mandioca para amanhã de manhã?”, ele me pergunta sem tirar o cachimbo
da boca. “Tem”, respondo sem tirar os olhos do homem nu da cintura para
cima, calças arregaçadas à altura dos joelhos e descalço, que anda de um lado
para o outro na calçada comprida e estreita com o rodo gigante na mão. Vaivém maquinal
do cozimento da farinha no fogo à lenha. É pago para torrar no correr da
noite cem quilos. Meu avô vigia a qualidade do produto. Retira-se só quando tem
certeza das previsões para aquela noite. Terminada a primeira fornada abro a
boca do saco e o forneiro joga as cuias contadas por meu avô ali dentro.
Faz uma média rudimentar e conclui com exatidão o número de sacas produzidas
até o nascer do dia, quando o trabalhador abandona o serviço levando com ele três
cuias de farinha como pagamento pelo serviço.
A escuridão do pequeno trajeto entre a
casa de farinha e o casarão dava-me a certeza de ver formas estranhas se
moverem debaixo das árvores. Era só clarear para eu correr àquele ponto do
caminho em que ainda vive o grande pé de jacas. Nada além dos galhos, raízes e
formigas eu encontrava. O prazer secreto de falar
com o desconhecido na escuridão da estradinha me fez retornar ao casarão de
meus avós em períodos de férias escolares por anos seguidos. Sonhava com o
momento em que abandonaria livros e cadernos e corria ao sítio mais curioso e
com rendimento escolar medíocre. No lugar dos conceitos e cálculos, o obscuro,
o não dito. Estabeleci a técnica de estudar as pessoas ao meu redor com todos
os sentidos afiados e a malícia dos meninos solitários. Pois bem, foi assim que
me dei conta de que observava três velhos na sala iluminada por lamparinas e brasas
de cachimbos.
O trabalho começa as sete e vai até às
dezessete. Uma bacia de ágata branca com água limpa espera meu avô, que encosta
a enxada à parede, tira o chapéu, a camisa suada, arregaça as pernas das calças
até os joelhos e, sentado no umbral da porta da cozinha, lava os pés, os braços
e o rosto. Permanece ali alguns instantes. Contempla o crepúsculo e entrega-se
ao espetáculo melancólico do fim. Aquele velho sólido e grato representa as
palavras empoladas do locutor que dramatiza no rádio A Hora do Ângelus: “Ave Maria! Hora da prece e do perdão!...” Chega
dezembro com as férias escolares e o fim da lida na terra. À Ave Maria
chorada com os raios do sol cansado, meu avô escolhe a rede armada no alpendre e
ali se balança até o momento em que vê os dois amigos aparecem. As visitas continuam até a chegada das chuvas, esperadas
entre janeiro e março, quando começa o plantio e alguns meses depois, outra vez,
colheita e farinhadas. Havia entre os três homens o tempo de suar na esfrega da
terra e outro para compartilhar algo cujo silêncio atiçava a minha
imaginação com possíveis e impossíveis possibilidades. Era o silêncio do
meu avô e de seus dois amigos naquele período de ócio motivo que tirava meu
sono e me levava a escrever páginas e páginas a adivinhar o que eles diziam sem
falar. Por várias vezes tentei colar o ouvido à porta do quarto, que dava para
a sala de visitas, na tentativa de ouvir o que os três. Jamais captei algo inteligível
capaz de confirmar as minhas especulações. Era o mesmo ritual:
cumprimentavam-se tirando o chapéu, sem o aperto de mãos, enchiam os cachimbos
com o fumo picado sobre a tábua da mesa, acendia-os com a luz da lamparina e
acomodavam-se nos bancos rústicos. Minha tia mais velha aparecia bocejando em
sua última obrigação do dia. Trazia o bule de café e as xícaras de porcelana
encardida. Deixava-os sobre a mesa e só recolhia no dia seguinte. Após ter
certeza de que ela não voltaria, levantava-me na ponta dos pés e observava os
três pela porta entreaberta. Passei minha infância na expectativa de descobrir
o que eles pensavam ao chupar os cachimbos, soltar a fumaça pela boca relaxada
com olhos baços de quem entrava em contato com um mundo diferente daquele que
desaparecia com a noite. A luz da lamparina decorava a ampla sala com as
sombras das figuras solitárias refletidas na parede branca. Fumavam, fumavam,
fumavam... Minha avó tossia aqui acolá sob o efeito da nuvem que chegava até
ela pelas frestas da porta. Diziam alguma banalidade a respeito dos
acontecimentos do dia. Calavam. Fumavam, fumavam, fumavam... O silêncio
aprofundava mais e mais na quietude da noite. Toda a casa dormia, menos eu. Os
trabalhadores dormiam. Mas os três homens não tinham sono. Desperto com a
inalação do tabaco eu não perdia um só movimento dos três. “Será um ritual?”,
penso ao lembrar as histórias de lobisomem que as raspadeiras contavam. Cheguei
mesmo a ter certeza de que meu avô e os dois amigos eram os personagens nunca
conhecidos daquelas fábulas. As mulheres se referiam aos lobisomens com o mesmo
erotismo com que falavam dos amantes. As descrições dos personagens com seus
cachimbos cheios de fumo reunidos à meia noite atrás da casa de farinha levavam
aos três homens que, nessa hora exata, levantavam-se e meu avô os seguia
na escuridão. Voltando sozinho algum tempo depois. Exalava não mais o odor de
tabaco, mas o mesmo cheiro do suor de Teresa, que ajudava na cozinha. “Mas... será que eles não se reúnem
para pensar como eu faço debaixo da jaqueira?”, considerei. Porém não, eles
não eram assombrações, tampouco poetas... Eram homens sólidos, sensuais, inteiros
como a própria existência. Devotos dos santos e tementes a um Deus a quem
amavam através dos fenômenos. Jamais souberam o que era um espírito perturbado,
daqueles que, aqui acolá, o padre era chamado para acalmar. Plano e simples como
os campos de mandioca, assim eu compreendi o espírito dos três
companheiros noturnos cuja devoção às sombras da noite era a mesma com a qual
aravam ao sol. Dia e noite eram apenas claro e escuro, som e silêncio de uma
natureza que, diferente dos homens, trabalhava feliz e sem descanso. E foi
assim que a intransigência de rapaz me levou à certeza de ter encontrado o real
sentido daquelas reuniões entregues a longas e solitárias baforadas.
Enfim afirmei nas páginas do caderno que os três velhos se encontravam regularmente
para quebrar a imposição do tempo, pois sabiam haver algo escondido nos recantos da escuridão, nos sussurros e nos
silêncios profundos que falava com eles, só com eles, seres iguais à vontade indiferente
ao relógio. Mas este tirano do tempo contado lembra, “meia noite!”. No
começo não gostava do cheiro forte do fumo picado. Certa vez, quase sufoquei e,
graças à resistência dos pulmões não tossi livrando-me assim de ser descoberto
pelos fumantes que pareciam escrutar alguma coisa que vinha dos alpendres, do
vento frio, da escuridão, das árvores gemendo no aconchego sensual dos galhos.
O peso da névoa de fumaça afastava do ambiente qualquer pretensão ao transporte
místico dos que combatem o cansaço enrolando-se no cobertor macio da oração.
Agora, ao observar os dedos amarelos de nicotina e os bigodes queimados dos
dois amigos que choram a morte do meu avô, que tem também os bigodes queimados
e os dedos amarelos de nicotina, abandono as certezas de rapaz e passo a
ter a certeza de que os três amigos se reuniam na sala nublada de tédio só pelo
prazer efêmero de nascer com
o dia.
O relógio bate quatro horas. Os dois
tossem, assuam o nariz e tomam o café frio. A chama das velas expira. Meu avô
não vai mais se levantar do banco para acompanhá-los à saída. Todos dormem. Os
velhos vão à janela e olham o começo da agitação. A sala está vazia e os amigos
podem se despedir. Sentam-se ao lado do caixão, acendem os cachimbos, dão
várias e longas baforadas. O fumo vira cinzas com a noite e os dois se
espreguiçam, vestem os casacos, repõem o chapéu e abandonam o morto. (Ana Barros)
Foto: Fernando Mourão Gutiérrez (domínio do Google) |