Vi a imagem na página de um
amigo e, deixando de lado inúmeras fotografias que chamam a atenção pela
técnica e beleza, me detive sobre ela por longos minutos. Deixei o
objeto falar à intuição e disse "é um artista o homem ou a mulher que
teve a preocupação e o tempo de se dedicar a reconstituir a havaiana".
Poderia muito bem andar descalço, não fazia nenhuma diferença, ou pedir
outras usadas à senhora caridosa. No entanto, apenas essa, bordada à mão
com fios e arames, tem algo além do objeto que se deixa captar pelo
olho de quem fez o remendo. Mas o que é que leva alguém escolher, mesmo
entre coisas que encontra no lixo, aquilo que ninguém quer, nem mesmo os
camaradas de infortúnio? Possivelmente o olho que direciona os sentidos
para aquilo que mais importa, para aquilo que seleciona como
interessante, bonito, inquietante, demoníaco ou sublime. Todos nós temos
muito ou pouco dessa cegueira seletiva. Vemos, amamos, odiamos o que se
deixa encontrar no nosso caminho. Outro dia, um acontecimento nesse
nível de sedução intuitiva me levou a vários dias de reflexão. As aulas
de Heitor haviam começado. Fui deixá-lo. Caminhamos em torno de 500
metros. Dobramos à esquina e avistamos a escola. Na primeira semana
tirei do baú aquele papo de adulto cheio de cuidados e ensinamentos para
com uma criança esperta e inteligente. Passados alguns dias quis testar
o poder das minhas palavras e a atenção de Heitor para os pontos de
referência caso chegasse a fazer o caminho sem mim: "você tem um ponto
de referência, esta casinha azul com seu jardinzinho maltratado", disse
parando em frente às plantinhas secas e adubo velho espalhado por algum
gato que havia enterrado ali as fezes. E qual foi a minha surpresa com a
resposta do menino que via coisas que eu não via, ali mesmo, da calçada
da casinha azul e seu jardim precário. "Não vó, eu me oriento é por
essas três palmeiras." Foi então que vi pela primeira vez as palmeiras,
ainda em desenvolvimento, fincadas na calçada da casa ao lado daquela
cuja paisagem arruinada prendera o meu foco. Nem Heitor dera a menor
importância, não tinha conhecimento, ao jardim decadente como ponto de
referência, nem eu ao verde das palmeiras, uma vez que desconhecia
também. O assunto grudou em mim com inquietação metafísica e pensei nele
até desmanchar a impressão em algo particular de dois indivíduos não
iguais. Olho agora os dois objetos, a casinha azul com o jardim pobre e
as três palmeirinhas plantadas na beira da calçada, porém, a minha
intimidade continua cúmplice dos primeiros. Enquanto Heitor tem olhos
para o exuberante, para a vida que explode em vidas (palmeiras
pequenas), eu, e isso é desde sempre, tenho olhos para o desbotado, para
o velho com suas nuances descamadas em pátina suja, para a ruína das
coisas expostas ao tempo. Toda essa história me levou na direção dos
versos de Sílvio Ribeiro de Castro: "dois homens seguem juntos na mesma
caminhada/um contempla as estrelas/o outro, os buracos da estrada."
Ana Barros
Foto: compartilhada do Facebook
Ana Barros
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