sábado, 28 de maio de 2016

Eu vejo os buracos da estrada

Vi a imagem na página de um amigo e, deixando de lado inúmeras fotografias que chamam a atenção pela técnica e beleza, me detive sobre ela por longos minutos. Deixei o objeto falar à intuição e disse "é um artista o homem ou a mulher que teve a preocupação e o tempo de se dedicar a reconstituir a havaiana". Poderia muito bem andar descalço, não fazia nenhuma diferença, ou pedir outras usadas à senhora caridosa. No entanto, apenas essa, bordada à mão com fios e arames, tem algo além do objeto que se deixa captar pelo olho de quem fez o remendo. Mas o que é que leva alguém escolher, mesmo entre coisas que encontra no lixo, aquilo que ninguém quer, nem mesmo os camaradas de infortúnio? Possivelmente o olho que direciona os sentidos para aquilo que mais importa, para aquilo que seleciona como interessante, bonito, inquietante, demoníaco ou sublime. Todos nós temos muito ou pouco dessa cegueira seletiva. Vemos, amamos, odiamos o que se deixa encontrar no nosso caminho. Outro dia, um acontecimento nesse nível de sedução intuitiva me levou a vários dias de reflexão. As aulas de Heitor haviam começado. Fui deixá-lo. Caminhamos em torno de 500 metros. Dobramos à esquina e avistamos a escola. Na primeira semana tirei do baú aquele papo de adulto cheio de cuidados e ensinamentos para com uma criança esperta e inteligente. Passados alguns dias quis testar o poder das minhas palavras e a atenção de Heitor para os pontos de referência caso chegasse a fazer o caminho sem mim: "você tem um ponto de referência, esta casinha azul com seu jardinzinho maltratado", disse parando em frente às plantinhas secas e adubo velho espalhado por algum gato que havia enterrado ali as fezes. E qual foi a minha surpresa com a resposta do menino que via coisas que eu não via, ali mesmo, da calçada da casinha azul e seu jardim precário. "Não vó, eu me oriento é por essas três palmeiras." Foi então que vi pela primeira vez as palmeiras, ainda em desenvolvimento, fincadas na calçada da casa ao lado daquela cuja paisagem arruinada prendera o meu foco. Nem Heitor dera a menor importância, não tinha conhecimento, ao jardim decadente como ponto de referência, nem eu ao verde das palmeiras, uma vez que desconhecia também. O assunto grudou em mim com inquietação metafísica e pensei nele até desmanchar a impressão em algo particular de dois indivíduos não iguais. Olho agora os dois objetos, a casinha azul com o jardim pobre e as três palmeirinhas plantadas na beira da calçada, porém, a minha intimidade continua cúmplice dos primeiros. Enquanto Heitor tem olhos para o exuberante, para a vida que explode em vidas (palmeiras pequenas), eu, e isso é desde sempre, tenho olhos para o desbotado, para o velho com suas nuances descamadas em pátina suja, para a ruína das coisas expostas ao tempo. Toda essa história me levou na direção dos versos de Sílvio Ribeiro de Castro: "dois homens seguem juntos na mesma caminhada/um contempla as estrelas/o outro, os buracos da estrada."

Ana Barros

Foto: compartilhada do Facebook 

terça-feira, 24 de maio de 2016

Zênite




Eu fazia a sala quando ele entrou: deus de fogo e mil ardis.
Trazia na cabeça os filhos loucos e disse:                                                                                                                                
“cuide deles – longe de mim”.
Entre a vigília e o sono – tempo necessário –
deixei que morresse, um depois do outro,
sem chorar coisas mortas
nem lamentar o que quis.
Amarelo ele ainda vem e me queima.
Mas os ponteiros se encontram – meia noite
E eu deixo que se deite
e faça zero em mim.

Ana Barros
Natal, 10 de abril de 2016.