Talvez a geração nascida nos anos sessenta seja a
última a ter o prazer de ouvir bons programas de Rádio AM. Em toda a década a
música brasileira, apesar de muitas versões estrangeiras, ainda foi a preferida
pelas estações, que se pautavam pelo samba canção, marchinhas e composições
românticas interpretadas por artistas cuja voz se tornaria em pouco tempo
sucesso nacional. A televisão era objeto raro vindo aparecer em minha cidade apenas
em 1970, período da Copa do Mundo, adquirido por Dedé Pereira, dono da maior
mercearia do lugar, homem elegante e por dentro das novidades mundanas. E foi
assim que, em uma de suas idas a Natal, comprou o primeiro aparelho de TV, preto
e branco, para ver os jogos do mundial com os clientes. Até aí o hábito era
ouvir rádio, das notícias às ofertas musicais. Estas, dedicadas ao ouvinte que
fazia seu pedido através de cartas, principalmente se estava apaixonado ou de
partida para São Paulo. O termo “página musical” era comum ao locutor do momento,
fosse no parque de diversão ou no Rádio. Com voz impostada, ele lia a crônica
de amor para aquela que ficara com o “coração partido”. De minha parte, desejava ardentemente ter um
amor que me fizesse chorar ao ouvir suas mensagens dramatizadas pelo locutor.
Porém, jamais tive talento para viver a experiência de prazer e dor, à época, lugar
comum das moças românticas. Muitas das minhas amigas de infância casaram com rapazes
que partiram no pau-de-arara. Depois de alguns anos trocando cartas, o amado,
que passa privações de toda sorte material e existencial no Sul Maravilha,
junta dinheiro e retorna para levar com ele a moça que o espera, feliz em
bordar o enxoval de virgem.
Sem maiores traumas pelo insucesso com os arranjos
matrimoniais, aliás, meus pais não fizeram questão de arranjar marido para mim,
deixei-me levar pela força do que era maior do que o desejo real de ir embora com
um noivo num pau-de-arara: a imaginação ligada no tempo do Rádio. De manhã à
noite deixo a fantasia livre para sonhar com o dono da linda voz. Brejuí de
Currais Novos e Poti de Natal, Tabajara de João Pessoa e Clube de Pernambuco.
Esta última quase me leva à loucura. Tony César é o locutor mais querido. De
voz macia e sedutora logo caio de paixão por ele, separado de mim por fios e ondas
curtas. Quero uma fotografia. Ele manda com autógrafo e um sinal no queixo. Passo
anos com a imagem colada na parede até o dia em que nos mudamos de casa e eu,
sem mais emoção, deixei-a para trás.
Mas não é só o galã invisível de voz aveludada que
me deixa abobalhada ao pé do rádio nos momentos em que não estou na escola. Até
nos afazeres de casa, desde sempre gosto de vassoura e espanador embalados ao
som, o movimento em limpar o chão e os móveis com esses objetos me leva ao devaneio
da criação, deixo-me hipnotizar por gente da velha guarda como Silvinho,
Elizeth Cardoso, Nelson Gonçalves, Altemar Dutra, Agnaldo Timóteo, Ângela Maria
e tantos outros que desapareceram com a Rádio AM, mas não de minhas lembranças.
Um destes, que escuto e vejo minha mãe dizer que é um nome importante da música
romântica, é Orlando Silva, “o cantor das multidões”, “a voz de ouro”, referências
com as quais é popularizado e disputado por compositores para dar vida e voz às
suas letras. Das mais conhecidas ficou Carinhoso, que tem Orlando Silva como
primeiro intérprete. Mas o meu biscoito mergulhado na xícara de chá que traz o
cheiro de passado ao som de vinil tocando na difusora de Bacalhau, dono do bar
no qual eu fui a melhor dançarina na matinê carnavalesca, é Jardineira, lindamente
interpretada por Orlando Silva e que, quando escuto, tenho o tempo retornado em
flashes do momento que eu não quis cristalizar ou que foi impossível parar. Foi
assim com o rádio, ele, o aparelho, companheiro de horas mágicas, saiu de minha
vida de forma cruel, mais cruel que a frustração de não ter um noivo a juntar
dinheiro em Sampa para me levar com ele. O rádio abrigava os vários amores
imaginados. Eu sem ele, o rádio, fiquei só: entre mim e mim.
Meu pai, que não gostava de nada que o tirasse do silêncio,
cujo único diálogo eram as discussões provocadas por comentários tolos na hora
do almoço, isso quando não estava mergulhado em pensamentos sombrios, jamais
presenciei ele se interessar por música, circo, teatro, dança, jogos, fofoca ou
bebida, chegou do roçado e, vendo-me levar vida maravilhosa de menina que escuta
Orlando Silva ao pé do rádio, desligou o aparelho, colocou-o debaixo do braço e
saiu esbravejando contra a minha “falta de controle”. Algumas horas depois retornou
com o dinheiro da venda do ABC – A Voz de Ouro, aquele do canarinho. Nunca mais
tivemos outro. Passo um longo tempo de luto, pois perdera a companhia amorosa
do aparelho e seus personagens, mais próximos de mim do que os que iam e vinham
à minha vista.
Sento para ouvir música outra vez só em 1981 quando,
já funcionária, compro um rádio toca-fitas. Um Motoradio preto, portátil e com
alça. Para onde vou levo ele. Aí já tenho um namorado e é na companhia dele que
passo a ouvir não mais os românticos da velha guarda, tampouco da jovem guarda,
mas os engajados Zé Ramalho, Fagner, Betânia, Gal, Chico, Caetano, Geraldo
Vandré, Rita, Taiguara, Elis Regina, João do Vale, João Bosco, Raul Seixas, etc.,
etc.
Ana
Barros
Natal,
03 de outubro de 2015.
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