Último dia do ano. Encostei
o carrinho atrás do senhor de cabelo acaju e esperei. Passados alguns segundos
ele percebe que há um caixa exclusivo para idosos e faz o comentário alto e em
tom de gozação: “quer dizer que a fila da sucata
é aquela ali?”, aponta para o lado confiante na plateia para o que acabava de
tornar público, ou seja, que era um osso
velho. O homem parecia ter acabado de sair do salão de beleza, pois tinha
vestígios de talco no pescoço e manchas de tinta no casco da cabeça, visíveis
graças à careca já bem desenhada. Mas não era só ele que demonstrava alegria
misturada à necessidade de ser simpático naquele final de ano. Todos na loja
estavam igualmente felizes e ansiosos por comemorar a data em algum lugar que
não fosse a casa. Tinham pressa de pagar e sair correndo para dar tempo de
arrumar as bebidas na geladeira, preparar os espetinhos do churrasco,
desamassar a roupa branca comprada de última hora, transferir a TV de 50
polegadas e o telão para a varanda com bandeirolas e encontrar os amigos sem
disfarçar o sorriso de vitória. Mas vitória de quê, perguntei aos meus botões
enferrujados no limbo das derrotas de mais um calendário que chegava ao fim.
Não tinha vitórias para sorrir nem ânsia de chegar a lugar algum. Enquanto
esperava ser atendido, e torcia para que demorasse mais um pouco, divertia-me
calado, pois nem eu queria falar àquelas pessoas alegres, tampouco elas, pela
minha antipatia não dissimulada, tinham o menor interesse em saber o que eu
pensava em lhes dizer. Paguei as compras e saí com a palavra “sucata” a encher
o crânio estreito para caber metáforas. À noite, ainda ruminava as três sílabas
quando acessei a Internet e abri a caixa de mensagens pela décima vez à espera
de um milagre, ou seja, de um “alô...”. Nada, nem uma palavra, sequer um desgastado
“Feliz Ano Novo”. Mais uma vez “sucata” retornou e enfim pude entender o que o
velho da fila queria dizer. Pois bem, naquele momento em que reconhecia o seu
território, firmava o mais novo pacto entre ele e o
tempo, o qual não era exclusividade sua e sim de todos os viventes, porém, ele
tinha que parecer único, e era, naquele instante particular ao assumir a nova
condição que anunciava como “sucata”. Tinha que ouvir a própria voz ecoar a
palavra que não podia dizer em silêncio a si mesmo. Velho, sim, ele era agora
um velho e sem a mais remota possibilidade de voltar a não ser. Mesmo com todos
os recursos da cirurgia plástica, se porventura viesse utilizá-la, a sua fase
de velho não seria negada e sim tornada mais visível ainda, uma vez que os
jovens são outros e outros os seus interesses e amigos, daí a indiferença
destes para com quem envelhece e o olhar zombador daqueles que, igualmente com
os dias de futuro contados, sabem com exatidão o que fazem os de seu tempo para
atrasar o relógio. Ou seja, não havia como fugir do tic tac lento e voraz do
círculo preso ao pulso. Mas que diabo, por que não paro de pensar na fome do
tempo? Talvez pela simples palavra falada em público, “sucata”, com a intenção
de revelar um segredo tenha me obrigado a enxergar o meu, tão risível quanto o do
homem da fila. A diferença entre os dois era que jamais assumiria em uma fila
seja lá de que fosse que sou um homem mal-humorado. No entanto, era só olhar em
minha direção para sentir o peso da soberba. Não sei até quando, mas o que faz
levantar-me de manhã é o ranger dos dentes ao esbarrar nas mesmas pessoas no
caminho para o trabalho. Só de vê-las sei o que escondem nos olhos baços e
costas curvadas. Enxergam mal, pensam torto, andam torto e fedem àquela hora do
dia. Não faz tempo cheguei a dar um passo adiante para empurrar a velha com um
terço na mão que passou por mim desfiando as contas e com a bolsa colada no peito.
Recuei não por medo ou pena, mas pelo desprezo que senti de mim, covarde. Não
fosse o mandamento que me acompanha até hoje “não matarás” empurrava não só a
velha, mas toda aquela corja para quem eu rangia os dentes não escovados e que
a chefe observava todos os dias com a mesma pergunta “já comprou a escova, Santos?”
Com a os lábios serrados de ódio jamais respondi sem, contudo, deixar de pensar
mil palavrões e desejar a pior das pragas para aquela que não se conformava
enquanto não me levasse ao dentista para extrair todos os cacos da boca. Ela
não sabia que há anos eu fizera um pacto com o tártaro e o fedor das axilas. Um
dos motivos para a minha decisão foi ela, a chefe, com o seu cabelo pranchado e
cheiro de extrato francês, por quem passei uma semana sem tomar banho nem mudar
a roupa só para corromper o que os colegas chamavam de “bom-gosto”. Se eu não
tinha mulher por causa disso? Este era o assunto predileto tratado entre os companheiros
da repartição ao que eu, no meu silêncio arredio, ironizava: “ora, danem-se as
mulheres. Elas também não têm o seu pacto? Ou será que desprezar homens estúpidos
e com corrente de ouro no pescoço como vocês não é também um pacto?” Mas era
fim de ano e o que me aborrecia não eram as mulheres que eu deixava de ter,
porque fedia. Mas o pacto com a comédia, que todos insistiam renovar naquele último
dia. Por que “Feliz Ano Novo” se de antemão sei o que me espera depois dos
fogos de artifício? Ou será que não vou mais esbarrar na velha com o terço na
mão e a bolsa agarrada ao peito? A repartição terá desaparecido? Mandaram para
casa a chefe com cheiro francês e verruga
no dedo? Acordarei de manhã sem o gosto de ralo na boca? Não, isso não vai
acontecer. Não que a traça não queira, ela até se esforça no trabalho sigiloso
de comer os livros nunca lidos da estante, mas porque vou encontrar as mesmas pessoas
no caminho de casa para o trabalho e elas vão de novo me encontrar na ida e
também na volta e todos desejaremos a morte um do outro até de novo o novo ano chegar e o prefeito encomendar
a festa e o teatro para o povo. Aliás, esse é um pacto ao qual renunciei,
rasguei o papel, mastiguei, fiz uma bolinha e atirei na cabeça do homem que
assistia às gargalhadas a peça Quando o asno
virou homem, tragédia transformada em comédia para facilitar a compreensão
da plateia. Antes que ele me visse, escondi-me debaixo da arquibancada sentindo-me
um herói. O leitor pode até achar que sou infantil ou coisa parecida. Só que, como
homem mal-humorado e nutrido na raiva, foi como dar um tiro de canhão.
Ana Barros
Natal, 01 de janeiro de
2015.