Não
faz tempo por aqui se exaltava o exemplo de consumo americano como modelo de
riqueza enquanto nós, brasileiros, permanecíamos na miséria material e cultural,
dependentes ainda de arranjos e ferramentas rudimentares como fogão à lenha,
batedor de roupas, potes de barro, ferro de brasa, panelas de barro, colher de pau,
moinho, pilões, entre tantos outros equipamentos de cujo manuseio nossas
ancestrais padeciam fadiga e exaustão a deixá-las num futuro bem curto doentes
e inválidas. A geração dos 70 anos é a última entre nós a guardar lembranças de
uma realidade que se pautou pela durabilidade do casamento e do conjunto de
coisas necessárias à sustentação e preservação do patrimônio da família. Vem daí
o embrião de projetos que visaram eternizar o homem séculos afora através de
utilitários e estruturas forjadas em materiais sólidos, pois representavam a
convicção de empreendedores com uma perspectiva para além, muito além, de seu
tempo. Apesar de conhecer o fim, sem grandes dramas, e este vinha com mais
pressa do que em tempos atuais de medicina propícia a prolongar ao máximo a
vida, planejavam o tempo para si e outras gerações. Basta observar a
arquitetura dos séculos XVIII e XIX com suas fachadas imponentes desafiando o
tempo e a engenharia contemporânea para imaginar o mobiliário, hoje encontrado com
poucas famílias, colecionadores e museus. Pouco se praticava o descarte de
objetos feitos para durar décadas. Era comum, com a morte dos donos da casa, os
filhos fazerem a partilha e, de novo, os objetos readquiriam status em outro,
ou outros, ambiente. Assim se procedia com carros, móveis, objetos de arte, joias,
roupas, calçados e tantos outros acessórios que passavam de pais para filhos como
herança de bens cujo valor afetivo e estético, na maioria das vezes, era o que
contava. Mas a inversão de valor se aprofundou cada vez mais através das
décadas de industrialização em larga escala para chegar à época de consumo
efêmero e consequente ausência de projetos duráveis, já que estes não
correspondem às necessidades de expansão capitalista volátil. Esta exige a
ditadura da ilusão de permanente presente, de eterno novo em que funciona e produz
não apenas bens perecíveis, mas também uma fantástica demanda de lixo, o qual o
novo mercado de serviços, filho do consumo desenfreado, não consegue recuperar.
Com o acesso às linhas de crédito e parcelas em longo prazo, ficou mais cômodo
se desfazer de um bem quebrado e adquirir um novo do que pagar caro pelo
serviço do reparo, nunca disponível no presente do consumidor apressado e
seduzido a trocar o que comprou ontem pelo lançamento de hoje. Vem daí o maior
dos clichês de inveja dos ricos americanos, que há quase um século engordam os
lixões com seus delírios. O complexo de inferioridade de alguns brasileiros impede
a percepção crítica da realidade de acordo com vivências mais simples e próximas
da natureza. Um exemplo recente, apesar da sofisticação dos utensílios e dos
mais famosos restaurantes do mundo, é Paris ser mais uma vez foco de
reportagens chamando a atenção para a infestação de ratos em ruas e parques. No
entanto, a decadente cultura francesa não foi percebida pelo casal de turistas
brasileiro que fez ironia à realidade daqui, que não dispõe de castelos abandonados,
aos quais acorrem artistas e moradores de rua, e postou em sua página na rede
social fotos em que aparecem deslumbrados com um piano velho abandonado na rua
como se houvessem descoberto um diamante no meio do lixão de um dos maiores
templos de consumo do planeta. Aliás, muitos latinos residentes na Europa e
Estados Unidos conseguem equipar suas casas com móveis encontrados em lixo,
deixados aí para serem levados. Por aqui, em meio ao deslumbramento da falsa
ascensão de uma “classe média”, já se ver móveis e eletrodomésticos abandonados
em vias e lixões. Entretanto, e isso é afirmação, à margem da cultura de massa surpreende
outra infinitamente menor em relação ao número de pessoas atingido, porém com
a visão revolucionária que realmente interessa. No Brasil começa surgir, aqui e
acolá, outro comportamento, nem um pouco invejoso de países carcomidos pelo uso
dos recursos naturais e posterior sucateamento das possibilidades existenciais e
sim mais atento ao canto da sereia da indústria do presente. Contrário ao
casal deslumbrado fuçando o lixo cheio de ratos de Paris presenciei na academia
de ginástica do bairro a conversa de duas mulheres que dá o exemplo não visto
nas novelas da TV nem no Facebook, de que nem só de facilidades é feito o cotidiano das pessoas.
Entre uma pedalada e outra, enquanto a primeira defende a geração dos
descartáveis como saída para a sua vida sem tempo, a segunda, com mais tempo
disponível para compartilhar com a família, mostrou-se reticente com o
triunfalismo defendido pela vizinha. Encostei mais nas duas e ouvi a segunda
dizer em tom menos triunfal: “Jamais tive necessidade de geringonças
tecnológicas. Resisto o quanto posso comprar novos aparelhos”, parou um segundo
para respirar e acrescentou, “há dias minha máquina de lavar quebrou e quase
senti um alívio por ter que jogá-la fora. Mas, pensei, isso é correto? Vi que
não. Eu, como milhões de outras pessoas, estava jogando fora o equipamento
quebrado,” respirou de novo e continuou: “ela durou seis anos, a próxima deve durar
mais ou menos este tempo também e, de novo, jogo a máquina fora. Tantas
máquinas eu compre antes de morrer, tantas máquinas vou jogar no lixo.” No auge
do esvaziamento dos lares e da terceirização dos serviços domésticos quando não
realizados pela parafernália tecnológica, ouvi a surpreendente decisão da
segunda mulher: “lá em casa, voltamos ao tanque com um par de luvas de borracha
e, quando necessário, recorremos aos serviços de lavanderia”. Esta parte da
conversa me fez lembrar três atitudes cuja prática leva, primeira, à divisão
das tarefas domésticas entre os moradores da casa, abolindo de vez a
concentração dos trabalhos enfadonhos e não produtivos sobre as mulheres da
família, bem como abrindo mão dos empregados domésticos, que passaram a se
qualificar em outras áreas ou a expandir seus direitos e, consequentemente,
ficaram raros e caros. Em segundo lugar, voltar à prática solidária, quase
esquecida em tempos nos quais todos parecemos tomados pelas facilidades em ter
tudo o que a indústria oferece, da máquina de lavar roupas ao avião. Com o
surgimento da máquina de lavar desapareceram as lavadeiras com a cruel labuta
de água, lata, trouxa e sabão. Mas hoje, e é paradoxal, graças à tecnologia e à
melhoria dos salários, temos cada vez mais o serviço oferecido àqueles que podem
pagar e abdicam de ter um eletrodoméstico, ou até mesmo um carro, e escolhem
retornar a uma prática antiga e que os especialistas no assunto chamam de
“economia colaborativa”, que nada mais é que renunciar ao consumo irracional
para usar os equipamentos de outro que os compartilha com um grupo de amigos na
prática da troca ou cobrando um valor adequado à proposta, qual seja a de
socializar os bens que passam a maior parte do tempo ociosos, como é a maioria
das máquinas e ferramentas que adquirimos ao longo da vida. A terceira
alternativa talvez seja a mais gratificante por ser a que une ação e pensamento
nas tarefas mais simples do cotidiano de homens e mulheres sensíveis. Para
aquele que se entrega às atividades que mexem com o físico, há a alegria
proporcionada pela execução dos trabalhos mais insignificantes como extensão do
corpo e a arte que nasce em momentos de movimento. Poderíamos citar vários criadores
que viveram entre a fadiga e a fadiga não como um fracassado meio de vida, mas como
meio de atingir o mais alto degrau da experiência humana. E isso é arte. Cora
Coralina na produção de seus doces e poemas do simples, Maria do Santíssimo na
pintura de seus galos em meio à labuta no campo e na cozinha, Bispo do Rosário em
suas performances solitárias num hospício enquanto não parava de inventar
ferramentas, Gorki nos trabalhos árduos entre camponeses e mineiros, Hemingway em suas pescarias e Rimbaud com a sua completa
entrega às caminhadas pela Europa e aos trabalhos mais ordinários como a querer
libertar (ou exaltar?) algo que só o frenesi trazido pela ação seria capaz de
realizar.
Ana
Barros
Natal,
03 de agosto de 2014.