Um
dos pontos negativos de se morar na capital é o isolamento lento e radical de
outras culturas, principalmente daquelas mais simples, mais interioranas, que
sobrevivem longe dos modismos do grande centro ou, contradição, semelhantes a
estes, na composição, a seu modo, da moda e costumes do tempo presente.
Para
entender um pouco a falta de percepção do que passa ao lado quando moramos numa
capital, basta um dia qualquer da semana ir à rodoviária e embarcar para
qualquer cidadezinha. Lá, surpresos, vamos nos deparar com uma riqueza de tipos
humanos que pensávamos existir só no frenesi da civilização como resultado da complexidade capitalista-urbano-consumista.
O mesmo outsider, o punk, o poeta maldito, o revolucionário, entre outros
modelos underground comuns nas ruas das capitais e vistos aí, quando não como
artistas por quem faz a cena poética da cidade, rotulados de marginais, vagabundos, loucos e bêbedos por alguns para desqualificar
o que foge do padrão burguês de normalidade. Ao se aventurar em terras há muito esquecidas, ou até mesmo desprezadas
pelas experiências negativas de um passado nem um pouco glorioso, aquele que
pegou o ônibus em direção ao simples se surpreenderá com o que vai encontrar
nas ruas, ainda públicas, de pequenas cidades, cujos homens e mulheres são tão
artísticos quanto aqueles encontrados em ruas, becos e avenidas do mundo civilizado.
Há
mais de 30 anos faço constantes viagens de Natal à cidade de Jaçanã, no interior
do Rio Grande do Norte, onde nasci e mantenho laços afetivos e familiares. Nessas
três décadas encontrei por lá personalidades que considero tão livres,
underground e irreverentes, mesmo sem ter consciência desses adjetivos, quanto
seus semelhantes encontrados em qualquer parte do mundo. Falo de Anacleto dos Santos (Creto), de Seu José Américo, de Josias Barbeiro, já falecido, e de
Juarez Rodrigues.
Creto
tem 53 anos, é solteiro, mora só e nunca teve namorada nem emprego formal. Faz
favores e abastece algumas casas com a sua lata d'água. Aprecia uma
"pinga" e quando embriagado torna-se tão virulento e debochado quanto
o mais famoso dos outsiders, Charles Bukowski, este, amado e odiado com a mesma
intensidade, principalmente por jovens que enxergam no "velho
depravado" o cinismo com o qual se refere à nulidade da vida e da moral
burguesas. Mas Creto é analfabeto, pobre,
sem referências intelectuais que o conceituem entre os letrados como são
Bukowski e outros tantos do mundo das artes, da poesia e da filosofia. Porém,
ao se aproximar de Anacleto com o seu feixe de garranchos na cabeça, ou com a
corda para amarar alguma bicho morto, logo se percebe um indivíduo capaz de
sobreviver desempregado, sozinho e ainda por cima com a liberdade de se embriagar e esculhambar com a sociedade que o
desdenha e exclui.
Antes
de falar de José Américo, lembro de um senhor muito importante na história de Jaçanã
e, particularmente, da minha, uma vez que conheci de perto a grandeza de um desviante numa cidade do interior cuja tradição
fundada nas covas abertas pela enxada não permitia convivência pacífica com um
pai de família que se sentisse livre no sentido de não querer trabalhar na roça para alimentar a família, regra patriarcal do mundo baseado na ideologia agrária, não seguir o partido de
direita (sempre foi de ideias revolucionárias), de não ter religião nem ir à missa com os
filhos, de falar o que pensa dos outros, do padre e dos políticos. Livre para
tocar sanfona no cabaré. Livre para, mesmo sendo casado e pai de seis filhos,
desaparecer por vários dias e por fim, livre para mudar de endereço repetidas
vezes no mesmo ano e nunca possuir nada além do adquirido no presente. Josias Barbeiro, ele também fazia barba, era
um desses homens incompreendidos pela maioria e admirados por poucos que
enxergam, tanto no desviante do meio
artístico quando no outsider periférico, o mesmo talento para a aguda percepção
do caos social. E foi graças à amizade com Josias, lá no começo da década de
1980, que comecei a decifrar a ética do diferente que não se iguala. Do
diferente que afirma a diferença e que não se submete a uma igualdade forjada na mais descarada economia da exclusão. Longe de ser um ressentido é antes consciente do lugar que habita no mundo. Mesmo que esse lugar seja visto socialmente
como abjeto, desumano, miserável, marginal.
José
Américo tem 83 anos e parece não um vovô, mas um punk dentro de sua roupa preta
e acessórios em torno do pescoço, braços, cintura, chapéu preto, óculos Ray ban
escuros, celular pendurado no cós da calça, rádio portátil, chaveiro, motoca e
capacete vermelhos. Alguém que o visse não deixaria de compará-lo ao mais
irreverente roqueiro ou mesmo ao punk mais caricato, cujos acessórios foi
encontrando aleatoriamente nas sucatas e no lixo industrial, fazendo do próprio
corpo uma performance do mundo das efemeridades. José Américo não tem
consciência da sua crítica. Entretanto, tanto ele quanto Creto e Josias Barbeiro, são a realidade que uns expressam pela
arte, no caso os poetas e artistas, enquanto eles, os loucos,
irresponsáveis, boêmios, bêbedos e vagabundos, no completo alheamento da
vida carregada de compromissos entediantes.
O
rompimento com a mesmice dos normais,
fenômeno que transforma mortais em semideuses, apesar do sofrimento causado
àqueles mais próximos e que desejam estabilidade onde é impossível impor regras,
é o que tão bem caracteriza Juarez Rodrigues em cima de sua moto Titan verde-limão
em busca de aventura nas brenhas da caatinga. Juarez tem 59 anos, reside na zona rural, é casado, pai
de três filhos, agricultor e ainda faz parte de um grupo de aventureiros
chamado Corujas da Serra. A sua
performance é digna de qualquer aventureiro de asfalto contemporâneo. De botas cano
longo e jaqueta de couro preta, bottons, correntes e anéis, ele também se
preocupa com a estética da moto, que tem um longo par de chifres de boi na
frente, uma barba de bode pendurada na traseira, caveiras de crânio humano em miniatura e
muitos adesivos de lugares e eventos por onde passou. A “tribo” de Juarez é
eminentemente serrana. Já desbravou toda a serra do Planalto da Borborema,
cujos serrotes se estendem entre a Paraíba e o Rio Grande do Norte. Para ele, “a vida é uma aventura”.
Ana
Barros