D. Clara
Descendo
a serra entre Jaçanã e Melão, interior do Rio Grande do Norte, encontro d.
Clara, antiga louceira já beirando os
noventa anos, a quem minha avó Rita Pereira chamava Quilara. Encontro Quilara com
o seu conhecido vestido floral e o cajado de pau de vassoura. O carro passa lento
pela velhinha dando tempo de pensar uma crônica envolvendo a devota de Cícero, pois a conheci no caminho de
Juazeiro, em 2011, quando seguia romaria com outros penitentes, entre os quais
chamava a atenção pelo vestido, pela idade e a perseverança em fazer a viagem mais
uma vez, pois repetia a tradição deixada pelos pais, em companhia dos quais
visitou o santuário até eles não poderem mais.
Daquela
vez, as flores e o tecido de seu vestido perturbaram a minha imaginação até
reencontrá-la dois anos depois, ainda mais velha, com a mesma estampa e o pau
de vassoura como bengala. Num instante, surgiu inteira a crônica, que não tem a
ver com Quilara, mas com o seu
vestido de malha estampada e a história dos panos de algodão, este, que vestia
homens, mulheres e crianças, além de cobrir a mobília da casa, e que hoje é
trocado por malhas baratas vindas da
China.
Resisto
ao desejo massificado das compras de malhas a preço irrisório e vulgarizado por
interesses de mercado, quando vejo as ruas tomadas por molambos. Passemos, pois, os olhos pelas lojas e calçadas das
pequenas cidades às dos grandes centros, nestas, aonde sacoleiras de todos os
recantos vão à cata de artigos ordinários, e vamos nos deparar com uma praga de
longos e calças listradas, blusas, saias, cangas de estampas e colorido ridículo,
cujas costuras e tingimento vão se desmanchar com a primeira lavagem.
Não
encontro outra definição para esta aculturação escancarada senão ausência de raiz de povo, cuja fraqueza troca
valores regionais por valores regionais de outros povos que não se desfazem
facilmente dos seus. Mastigando esses pensamentos rabugentos, lembrei do
fedorento e quente volta ao mundo, tecido
sintético importado dos Estados Unidos, entre as décadas de 1960 e 1970, época
de seca, desemprego e fome por aqui, e consumido maciçamente por nós nordestinos,
não só pelo preço baixo, mas também como algo revolucionário uma vez que o
ferro de passar, ainda à brasa, era aposentado junto com as anáguas e a goma,
que dava às roupas a impressão de volume e vincos perfeitos às calças de linho
dos homens.
Mas
o volta ao mundo, cujo nome
representava textura flexível, sem dobras nem amasso capaz de dar uma volta em
redor do universo e continuar tão liso quanto antes, substituía o tecido
adequado ao clima tropical, que é o algodão. Paradoxalmente, nas mesmas
décadas, passava-se a consumir outro produto largamente em moda na América do
Norte, o jeans, cujos fios ainda são produzidos em parques industriais de
países periféricos, inclusive o
Brasil estando entre os grandes produtores mundiais.
Voltando
a Quilara, descubro enfim o porquê da
forte impressão que a louceira me causou com o seu vestido floral. Não foi a
sua libertação dos incômodos do ferro de brasa nem a facilidade com que encontrou
o artigo a preço de banana (?) na feira. O que chamou a minha atenção naquelas
flores sobre o tecido mole, foi a memória da menina que ia à missa no domingo e
ficava olhando os vestidos novos de algodão com a sua atemporalidade, uma vez
que o tempo ainda era domínio dos homens e de suas ferramentas rudimentares. E
foi no reencontro com Quilara
descendo a serra, que se estendeu à minha frente um jardim de lembranças de um
tempo de saias com pregas até o tornozelo, casacos de manga três quartos, lenço
ou mantilha na cabeça, calças e paletós de casimira ou linho feitos sob medida
pelo alfaiate, e um campo branco de capulhos que, nas fábricas e depois no
interior das casas e dos corpos – com as suas calçolas e ceroulas –, se
transformariam em flores de todos os tamanhos e matizes.
O
vestido de Quilara, excluído dessa
visão onírica da infância, representava apenas uma época em que somos levados a
unir os interesses mercadológicos da acessibilidade,
consumo e preço baixo. O cuidado com a textura, com a estampa adequada à
ocasião, o estilo campesino com seus saiotes franzidos e casacos ajustados à
cintura, ficaram para trás com o esquecimento
do algodão e a diferenciação de jovens e adultos por meio dos usos.
Ana
Barros
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