Era
tarde de sexta-feira e eu passeava na Casa
das Primas quando o homem magro, pele escura, chapéu de cangaceiro, olho
vazado protegido por um tampão de couro e paramentado para a Guerra escorregou a mão na minha perna
roliça e disse com a boca cheia de cuspe escuro de fumo de rolo: “Maria
Bonita”! Levantei os olhos assustada e reconheci aquele que no passado me levou
pro mato e fizemos coisas que mortal algum faria. Gostei da mão com todos os
cinco dedos enfeitados com anéis cravejados de olhos de jararaca. Gostei e
deixei que ele chegasse às rendas da minha calcinha e suavizasse a carícia
sentindo a maciez da minha pele sob o algodão cru que mandei madrinha Zefa trazer
de Campina Grande. Deixei que ficasse naquele enxerimento até que eu, desfalecida, fingi que não sabia de quem se
tratava e pedi que desse provas de quem realmente era. “Ora então minha Maria...”,
disse afiando a ponta da faca na palma da mão gretada, cuja lâmina eu bem conhecia
quando buscávamos uma moita de capim... “flor de maracujá mais doce. Como não
reconhece aquele que carregou os desenhos dos teus vestidos no lombo da égua
Chique-Chique, que bordou tuas saias e as tuas calcinhas? Eu, que fiz tuas
alpercatas de sola, que desenhou teus vestidos iguais aos das beldades de Paris
e te cobriu com as mais belas joias de osso e couro de bode? Como não se lembrar
dos fios que mandei vir de Roma, iguais aos fios de algodão das cuecas do Papa
Leão, só para te agradar com um mimo de calcinha branca com as iniciais L. M.
B. bordadas com o sangue do cabra que se atrevesse olhar pro teu rabo?” Fingi de
novo não saber de quem falava e mostrei-lhe cheia de vaidade meus atuais apetrechos.
E mais que depressa, só para atiçar o ciúme do cabra que me fez a fêmea mais cobiçada do meio dos jagunços,
levantei um pouquinho mais a saia, bem perto da periquita, e o fiz ver a
tatuagem – uma linda flor de maracujá – feita por Hefaísto, dizem, devido à
pegada selvagem de marcar com um agulhão aquecido no fogo, que é filho do
finado Jararaca. “Fiz esta tatu para
os olhos de Apolo, poeta arretado com nome de deus, mas que é das bandas de
Catolé do Rocha e que prefiro chamar de Sol,
pois tu, Lampião, alumiavas apenas as
brechas dos caminhos cheios de carrapicho e facheiro em que rasguei todos os fundos
das minhas calcinhas nas fugas sem trégua em que me metias. Sol, ao contrário, alumia toda a extensão dos campos à minha frente e, além de ser
homem fino da cidade, poeta civilizado, desenha lindos vestidos pra mim. Até a
costureira não é mais um cangaceiro grosseiro e assombrado pedalando a máquina enferrujada
debaixo do umbuzeiro. Frequento agora o ateliê de D. Mariquinha, mãe de Dulcinea
Del Toboso, a noiva do cavaleiro da Triste Figura, homem de elevada cultura e
defensor das donzelas em apuro como eu. Ah se ele te avistasse por aqui a me
perturbar... Logo te revirava as tripas com a sua lança heroica.” “Tá boomm...
Já estou ficando impaciente com essa conversa de mulherzinha. Aliás, subi aqui
só com o propósito de meter medo num tal de Toth, que chamam de sábio e poeta e
que insiste em me difamar nas feiras jurando que cheguei no céu depois de ter
me confessado com Padim Ciço. Mas
como prova da minha danação nos infernos, deixo de presente pra ele, pra tu e
teu poeta de dedos sem anéis mas de relógio no pulso que conta os minutos e os
segundos do tempo para o qual eu caguei e cago, o fio de pentelho que arranquei
dos culhões do capeta para pendurar-me e parar o pêndulo do relógio do teu
amado e travar os dedos dele quando for desenhar essas garafunhas que não têm
nada do traço mimoso dos meus.” “Ainda bem”, Pensei satisfeita e virando a
cabeça para o lado, “que Sol não desenha
vestidos com a tua baitolagem.” “Lembra dos comentários de que eu era veado só porque costurei teus vestidos
no meio da caatinga? Pois bem, lá no inferno comenta-se a mesma coisa em
relação às camisolas de fios de taturana que bordo pro papa...
Ana
Barros