Já
faz algum tempo que resolvi desligar o aparelho de televisão. Esqueci que ele
dorme esquecido num canto qualquer da casa. Teve vezes que liguei querendo me
distrair um pouco, mas logo o enfado em ver a repetição exaustiva das falácias
que, num parto doloroso, uma vez que dói mexer nas emoções cristalizadas, resolvi
arrancar de mim.
Se gozamos ao assistir novelas na TV, enfiados até o pescoço em mentiras, traições e falsidades, com o tempo e a falta de um meio de cultura melhor, estas passam a ser citadas como verdade. E arrancá-las de nosso cotidiano custa o preço do silêncio nos cômodos da casa e à entrega, ou não, a outros veículos mais inteligentes.
Como
sou dada ao retorno da mesma coisa até sentir o zero da necessidade, resolvi
ligar a TV na sexta-feira, final da novela da Globo, Lado a lado. E foi como se tivesse chegado de viagem a um país distante,
onde não se valorizasse cultura semelhante àquela que a tela me oferecia como
motivo para a minha educação feminista, pois, estrategicamente, a Globo
transmitia o fim do folhetim no Dia
Internacional da Mulher, oito de março.
Como
já fazia muito tempo que não assistia novelas, quase perdi os sentidos ao ver a
personagem miserável em que a Globo havia transformado a atriz Patrícia Pillar.
Não compreendi por que alguém ainda perdia o seu tempo sentado de frente para a
TV para assistir tamanho absurdo cultural.
Mas quando se trata de algo chamado arte ou
cultura para o povo, feito para o público, tive o cuidado de demorar mais
um pouco em minhas reflexões para poder escrever o que descobria em minhas
próprias experiências, as quais são semelhantes à de todos que desligam a TV. E
foi com orgulho e vitória que percebi de vez a nulidade da TV em minha vida na
noite de sexta-feira, oito de março. Orgulho porque estava completamente livre
de algo que não me fazia falta, igualmente a uma daquelas paixões pela qual
sofremos horrores e, passados alguns meses, ou anos, enxergamos envergonhados,
apesar de não haver vergonha nenhuma em se apaixonar, o desperdício de tempo e
de energia com algo tão inútil como a paixão. Vitoriosa pelo salto de qualidade
em minha escala de valores. Não
posso chamar de outra coisa senão de aberração, apologia aos instintos mais
baixos, a exploração de valores mesquinhos em personagens que, em vez de
crescer, de amadurecer em seus papeis, tornam-se figuras raquíticas, absolutamente
más, sem o mínimo de sensatez, ou o contrário, anjos, bondade absoluta,
ingenuidade ridícula e insana. Ou seja, um maniqueísmo patológico que leva o
que se impõe com a força bruta de seu caráter à condição de mostro, marginal, bandido sem
redenção nem atenuantes morais. Quem é mal é mal o tempo todo, tira vantagem o
tempo todo sobre pobres vítimas da
bondade total para no final pagar todas as penas como um demônio queimando no fogo
eterno do inferno. Isso para deleite do telespectador, que frequentemente
interfere na trama diabólica.
Confesso
que já senti empatia com esses tipos mesquinhos da TV. Há como que uma
necessidade de vingança virtual, uma vez que na realidade há a autocensura e a
lei punitiva, na crueldade repetida todas as noites nos capítulos que parecem
não ter fim. Há um gozo mórbido na tortura que é a novela feita para estimular os
valores menos lapidados pela consciência despertada. Podem ser os mesmos
valores que encontramos nas tragédias de Shakespeare, nas novelas de Dostoiévski,
em Sófocles, entre outros do mesmo poder psicológico na construção de
personagens complexos porque humanos.
A
diferença, entretanto, é que nestes há uma moral das alturas, uma ascese do
pensamento que reflete, busca e supera. Nada mais tocante que a agonia
metafísica de Raskolnikov em Crime e Castigo, com a sua redenção na dor e no castigo,
este, não imposto pelos homens, mas pela consciência do indivíduo que acusa e
liberta. Isso é a moral dos grandes da literatura... Édipo, cego para a
banalidade do devir mas lúcido do seu crime,
que é a persistência no conhecimento que cega
para dar à luz. Sempre uma moral para aquele que entra no livro e se confunde
com os tipos descritos com profunda compreensão, amor e empatia com o homem
comum perdido no tempo existencial.
As
novelas da TV brasileira, apesar do conhecimento emitido por alguns antropólogos a respeito de
seu poder na releitura de assuntos como feminismo, homossexualidade, meio
ambiente, etnia, entre outros, estão fora da capacidade luminosa da moral. Se
existe nelas uma moral, é a moral do pequeno, do vazio de dor e cura. A imagem da
baronesa Constância (Patrícia Pillar), humilhada por todos e abandonada numa fazenda
por aqueles a quem fez o mal, resume a insignificância dos
personagens. Se neles há crescimento, é o crescimento do abismo entre o animal
e o pensamento.
Ana
Barros
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