Quando
conheci o Juazeiro do Padre Cícero (CE), em agosto de 2011, fiquei surpresa com
a presença de um pau-de-arara vindo de São Luiz (MA). Era o único do gênero no
meio de dezenas de ônibus e vans provenientes de todos os cantos e recantos do
Nordeste. À noite, fotografei o veículo com os romeiros dormindo em redes
armadas sob a lona. Pela manhã, logo cedo, procurei o pau-de-arara para
finalizar o registro, no entanto, frustrei-me ao ser informada pelos vizinhos
do rancho onde pernoitei que os
maranhenses haviam partido na madrugada, driblando assim a Polícia Rodoviária,
uma vez que não é mais permitido esse tipo de transporte na BR.
Esta
passagem veio à memória ao voltar a Jaçanã (RN) e encontrar uma realidade bem
diferente daquela década de 1970, anos da grande seca, quando o pau-de-arara
era o transporte sinistro que levava embora homens jovens e produtivos como
bóias-frias das lavouras e indústrias do Sul maravilha. Para trás deixavam
mulher e filhos famintos. Algum tempo depois todos estariam juntos num barraco
da periferia da grande São Paulo ou de outra região em expansão como Brasília,
Minas e Goiás. De lá para cá pouco sabemos do que sobrou da vida desses retirantes,
quem são e o que fazem hoje e que cultura herdaram os filhos e netos da geração
do êxodo.
Mas
isso é assunto para outro momento com mais detalhe histórico-sociológico. O que interessa aqui, portanto, é a percepção
da ocupação do espaço deixado pelo pau-de-arara com a ausência de seus
passageiros tristes – imortalizados por Luiz Gonzaga na Triste Partida, poema
de Patativa do Assaré – e conseqüente modernização das estradas e do transporte
urbano.
Jaçanã
é apenas um exemplo micro da transformação que vem ocorrendo no interior do
Nordeste no intervalo entre o pau-de-arara e o avião. Com quase dez mil habitantes,
a cidade cresce em ritmo acelerado e mostra-se com um forte potencial turístico
junto às cidades vizinhas que formam a Borborema potiguar, cuja ascensão
econômica e cultural vem se dando pela abertura de universidades e conseqüentes
instituições de apoio, pesquisa e contratação de mão-de-obra especializada.
Quem
observa cidades do perfil de Jaçanã com saudosismo de uma época pacata, sem a
correria do mundo expandido, vai encontrar apenas a decadência corrompendo todo
o tecido social. Vai dar ênfase à crescente onda de crimes, assaltos,
prostituição, tráfico e consumo de drogas. Enfim, lamentará que o interior se
nivelou em desgraça aos grandes centros. Convenhamos uma visão real e pessimista.
Porém, há outro olhar, real também, mas afirmativo, que pode ser direcionado à
outra margem. E é essa margem que comecei a analisar em minhas caminhadas e
passeios de bicicleta pelos arredores de Jaçanã.
Vi
no começo e no fim do dia ônibus, vans, motos e bicicletas transportando
crianças de casa para a escola e da escola para casa. Já é parte da paisagem
das cidades brasileiras o ônibus amarelo modelo americano com o nome na lateral
ESCOLAR. São comuns também os benefícios do governo federal às famílias pobres,
bem como a extensão dos Institutos Federais de Ensino- IFs. Iniciativa criticada
por parte da mídia e por alguns que ainda mantêm a cabeça na casa grande e as
decisões entre a senzala e o pau-de-arara.
Basta
contemplar a cena matinal quando dezenas de crianças e jovens, em vez de irem
para a roça com os pais vão à escola, para descobrir que algo positivo se
constrói na educação da cidade. Nenhuma saudade de uma época em que a ênfase
era dada à agricultura familiar, não
esta que se pratica hoje com uma política de crédito, tecnologia e fixação do
homem à terra. Mas àquela na qual os pais aumentavam a prole para o trabalho
braçal e dali ninguém mais saía. Vidas limitadas entre o roçado e o fogão; o
estômago e o cemitério.
Na
efervescência multicultural contemporânea enxerga-se o aceleramento da
desconstrução da metafísica da sobrevivência, da mística quase beata da
simplicidade misturada ao messianismo, humildade, lassidão e barriga cheia. O
documentário O fim e o princípio (2005), de Eduardo Coutinho, é uma riqueza de
detalhes dessa vida desenhada pela enxada cortando a terra fertilizada com as
sementes da miséria. Eduardo aprofunda a história até o fecho com a velhice
de mulheres e homens consumidos por uma existência plana. O cenário é de
decomposição. As fachadas, as paredes, os móveis, os corpos, a história de cada
um, são corroídos, imprestáveis num tempo que os acomodou na indiferença dos
dias sem ação.
Mas
nem tudo está perdido no documentário de Eduardo Coutinho. O próprio nome é um
alento: O fim e o princípio. E o
princípio, no filme, é a simbologia do real que acontece nas cidades do
interior nordestino. É a jovem professora, os agentes de saúde, os estudantes,
meninos e meninas que substituíram a lida na lavoura pelo saber, que rompem o
marasmo, a nulidade dos velhos impotentes em suas cadeiras de balanço, ou
sentados perto do fogão de lenha (cenas do filme) com seus cachimbos acessos na
chama da lamparina de querosene esperando o filho que partiu há trinta anos, ou
o benefício da previdência no final do mês para comprar fumo e cachaça na
cidade.
Quanto
ao pau-de-arara, é lamentável que ainda sobreviva no estado do Maranhão num
momento em que viver bem pode significar
rompimento com a ignorância que perpetua a miséria material e intelectual de um
povo que se descobre capaz de agir além das fronteiras do fogão e da casa
grande, além de nomes ilustres da política paternalista e oligárquica que
teimam em não deixar o borralho da cultura.
Ana
Barros