Para
Marilu Albano
Abro esta comunidade
com um tema pra lá do cafundó: malassada. Quem nasceu na roça experimentou esse
prato feito por mães habilidosas que, com uns três ovos, farinha de mandioca,
um pouco de sal e banha de porco, faziam enormes fritadas que saciavam a fome
de uma penca de filhos. Mas a palavra malassada, que pode lembrar ovos e
galinha caipira ciscando no terreiro, cacarejando, dando ao galo e cagando na
cozinha – minha avó chamava merda de galinha chinica (?) – também serve para
atualizar conceitos e paladar.
Malassada veio à mesa
quando Ziza e eu tomávamos café na Poty Livros enquanto esperávamos o começo de
Machuca, filme chileno, do programa Café com cinema. Ziza pediu um petisco
redondo cheio de queijo derretido com manjericão. Provei um pouco e exclamei
imediatamente como se acabasse de comer a minha madeleine: “malassada!” E um fluxo de memórias veio lá do cafundó
alegrar a reunião com as amigas e chamar a nossa atenção para o presente, tempo
absoluto sobre quem nada mais deve ao passado nem tão pouco ao futuro. Seria o
nosso caso!... Deixemos isso de lado.
O melhor mesmo do Café com cinema é a reunião com as
amigas antes e depois da sessão que acontece uma vez no mês. Somos cinco (Ziza,
Graça, Marilu, Rosa e eu) que, após uma pausa para casar e criar os filhos, menos Graça, e de afundar toda uma
velharia lá no cafundó, retornamos às coisas do mundo aqui de fora. E haja
conversa, capuccino, torta de limão, de nozes e outras delícias vindas lá de
trás requentadas com nomes chiques. Já
pensou no cardápio está escrito malassada? Eu adoraria... mas lá estava grafado
o elegante termo francês quiche. Pra
falar a verdade, nem de longe se compara à grande e fofa fritada de minha mãe,
que partida em generosas fatias dava pra alimentar seis bocas. O quiche, do
tamanho de um pires, apenas fazia parte de um conjunto de acontecimentos
felizes.
Malassada é só um entre
muitos achados que vamos descobrindo a cada edição do Café com cinema. Tanto as conversas mais o lanche antes e depois da
sessão, quanto os temas abordados pelos filmes, sempre dramas políticos e
psicológicos, provocam uma renascença de sentimentos, experiências e usos que
pensávamos fazer parte de um passado já inofensivo. E não é que de repente nos
redescobrimos atuais, como se o tempo houvesse nos acompanhado, corrido não à
nossa frente, nos derrubando no pântano da solidão, mas ao nosso lado, cúmplice
e companheiro! É um estágio que passa
pela adaptação, claro, dos jargões contemporâneos. E um deles é o que mais me
agrada e convida à ação: coletivo.
Confesso que foi meu filho, de 25 anos, quem me educou no conceito, apesar de
na década de 1990 já conhecer os trabalhos do grupo Oxente, que era um coletivo.
Mas à época eu estava mais para o duplo sensual homem/ mulher...
Tomando café e comendo
broas com nomes requentados; assistindo filmes contextualizados em 1960, 1970,
1980... Reacendendo as atitudes libertárias
de moças independentes e autônomas, nos demos conta do quanto tínhamos de
presente. E de malassada a quiche foi
um salto qualitativo. Deixávamos lá no cafundó todo um ritual de palavras, de
valores e gestos e de novo experimentávamos talvez os mesmos elementos, só que
com uma carga de lucidez no foco onde o emocionalismo nublara toda uma etapa
também feita de presente.
É no reconhecimento e
aceitação de que não comemos mais malassada e sim quiche que a lucidez nos faz atuais. Não com a consciência de um
jovem contemporâneo, pois aí estaríamos negando toda uma multiplicidade de
experiências, porém capazes de compreender a diferença entre o que já não tem
força, que esgotou nos usos e o que é potência porque é presente e se impõe.
Graças aos coletivos contemporâneos,
que podem começar nas redes sociais, exemplo do Café com cinema, retornamos ao cafundó apenas para olhar o passado
e aí desprezá-lo uma vez que o presente nos oferece mais uma vez a realidade vestida com outros nomes do mesmo.
Ana Barros
*Crônica publicada no grupo
lá do cafundó na minha página do
facebook: anamariabarros8@gmail.com