segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Vagalumes e vitrais





 

No museu da cidadezinha de Arês, escondida entre o mar de Tibau e a Lagoa de Guaraíras, Rio Grande do Norte, me deparei com coleções de garrafas separadas por tamanho, volume e cor. Garrafas cujas cores encheram os meus olhos da alegria infantil encontrada no contato com os materiais mais simples e precários, como são os vidros coloridos à luz do interior de uma igreja. Sim, o museu de Arês é na igreja de estilo barroco São João Batista. Pois bem, por este detalhe, escolher um lugar sagrado para acomodar resíduos profanos, aumentou em mim a sensação de completude, de aniquilamento de culpa. Da infância trazemos a memória de ordem, de disciplina, de cuidado e disposição dos objetos sobre o mundo a impor um ideal de permanência. Ideal este conquistado nem que seja da contemplação de um caco de vidro azul: do vinho do padre? da cachaça do sacristão? do licor da beata? do azeite do bispo glutão? Existir para o colecionador de Arês, tão disciplinado em guardar e arrumar garrafas e garrafinhas secas, possivelmente não consumidas por ele, tinha a ver mais com volumes, espaço, tempo e cor. Uma escolha estética em meio ao cotidiano medíocre das obrigações. Sabido é que de dentro dos frascos escorreram líquidos maravilhosamente iguais à beleza das garrafas. Deleite sensual para aquele, ou aquela, que enganou o tédio com vagalumes e vitrais.

Ana Barros

Natal, 18 de setembro de 2019.

 



domingo, 26 de janeiro de 2025

 Memória de flor 

 

Nasci flor 

Cheiro e escuta 

do útero de minha Mãe: 

- Ô de casa!... 

Foram-se todos 

Antes, porém, comeram a placenta  

e enterraram as cinzas do menino  

deixando para trás com o sal da urina velha 

o penico de ágata branco, o bule azul furado com o pé de mirra, 

Os cacos da panela de barro, o jirau com as  

touceiras de doze horas e o retrato boiando no lodo 

Os olhos vazios de tempo dançam nas horas... 

não veem o oratório ser comido pela broca nem 

o sino repicar missa dos mortos 

Esquecidos, os objetos adubam raízes 

memória de flor 

 

Ana Barros 


 

 

 

terça-feira, 26 de março de 2024

O céu da filha morta


Você disse para eu ir sem medo... eu, que desde sempre solo a filha morta, gritei: “ avante! ”

Porém você viu tão somente a virgem louca seduzida por bilhete rosa do esposo que arrasta poder e glória da frieza da cama à impotência no túmulo

“Mas você não sentou diante da cria desdentada de fortuna e juntas não cantaram o canto de Malogro? Então mais uma vez sente à mesa em que os pratos foram retirados, e cante! ”

Com alegria nos lábios digo que desde o nascimento não sento à mesa em que os pratos foram retirados

Quedo à sombra que abre réstias no céu da filha morta

 Ana Barros


sábado, 9 de março de 2024

Apaixonada

A fadiga trouxe de volta o objeto que matei

Malogro ramificado nas fibras nervosas do sonho

Tropeço no real

É vontade esmagada de novo   

 

Ana Barros

terça-feira, 30 de janeiro de 2024

Girassol seco


Venho de gente com rosário na mão  

e a faca entre os dentes 

Venho de gente que se deita à cama com cheiro de terra 

e goza sem gozar girassol 

Venho de gente de olho mau  

Passo curto no risco em fuga 

Venho de gente de cores quentes e alma morta 

Desejos e ausência 

Venho de gente que fechou a porta 

 

Ana Barros 

sexta-feira, 20 de outubro de 2023

Estética do vento

O meu colar é o ventre largo de Afrodite  

E a corrente  

elos partidos do círculo 

Abro as trancas do pensamento: 

sou partícula na espiral do vento 

E quando as filhas das minhas filhas vierem  

direi outra vez e sempre 

aqui estou novamente 

 

Ana Barros 

Natal, 26 de setembro de 2023.