As galinhas morrem penduradas de cabeça para baixo. Alguém amola a faca para retirar o couro e as vísceras dos animais abatidos. As crianças acordam com o berro das ovelhas. Duas horas se passaram. No lugar do sangue e das fezes há agora grande quantidade de carnes limpas com água quente e sal. As crianças voltaram a dormir. O silêncio é quebrado apenas pelo manuseio dos utensílios nas mãos das mulheres que, até ali, olhavam modorrentas à ação violenta dos homens. O cheiro do café coado anima as duas vizinhas que estabelecem entre elas uma divisão amigável das tarefas. Decidem que o tempero fica sob a responsabilidade da dona da casa, uma vez que os convidados conhecem o toque picante dos pratos da velha senhora. Assim começa o dia do aniversário de minha mãe, a quem desde sempre chamei Ló, apelido de Lótus. A festa sempre começava com algazarra e bom humor, porém logo enveredava numa correnteza tão azeda quanto o vinagre usado no preparo da comida. Era assim todos os anos e ninguém deixava de vir alegando cansaço ou constrangimento das repetições dos dramas familiares com data marcada para acontecer, o dia do aniversário de Ló. Havia motivos cristalizados para não faltar. Um deles era a mesa farta o dia todo. O outro, as cenas burlescas entre a anfitriã e os filhos, cuja tensão aumentava à medida que as garrafas esvaziavam e os convidados, já embriagados, entravam na história, fosse como plateia silenciosa, fosse como bobos da corte. O Enredo teria início logo a filha mais velha chegasse da capital onde morava há mais de vinte anos. Aparecia só naquele dia, carregada de mau-humor e presentes caros. “Trouxe meu uísque?”, pergunta Ló mal a filha desce do carro importado rebocando malas e sacolas de grifes. “Maravilha!”, disse Ló agarrando a caixa da bebida sem cumprimentar minha irmã e os filhos. Estes, de fones nos ouvidos e celular na mão, não viam nem ouviam além deles mesmos. Estavam preocupados em encontrar tomadas. O mais novo para carregar a bateria do aparelho e o mais velho para ligar o secador dos cabelos. Eu olhava do alpendre sem me dispor ajudar a minha irmã, que ficara para trás com as bagagens e a cadela Minnie. “Voltem aqui, seus filhos da puta!” “Vou cancelar a viagem à Disney, esperem só!”, grita enquanto arrasta as malas e a cachorra vestida com saiotes de bolas vermelhas.
Ló tomava a primeira dose dupla de uísque daquele dia, fazia setenta e sete anos. Três filhos. Eu era a segunda, o terceiro, deixo para falar dele mais adiante. Dois netos, nenhum genro e um marido que desaparecera quando comemorávamos a Páscoa na casa da madrinha do meu irmão, comadre de Ló, que também fugira naquele mesmo dia. A fuga dos dois se tornou motivo recorrente de lamentações e brigas entre nós, mas não desculpas para cancelar a festa do aniversário de Ló. Há mais de dez anos reuníamos parentes e amigos que vinham de longe saborear os pratos de galinha e bode, cuja engorda se dava ali mesmo no quintal sob os cuidados de Ló. Além das duas filhas e dos netos, faziam parte da festa alguns tios velhos, muitos primos, compadres, comadres, afilhados e pouquíssimos amigos. Ló não fazia questão de tê-los por perto, nem naquele dia, tampouco nos outros. Na ausência deles eu era a única presença naquela casa que enchia uma vez no ano de pessoas com as quais não mantínhamos relações próximas. Vinham para comer, beber e participar das nossas brigas. Por sermos apenas ela e eu, sem muita conversa e, consequentemente, excesso de ironia e dissimulação desempenhadas na rotina silenciosa de duas mulheres com a idade há muito passada das cobranças do mundo, tirávamos proveito da reunião anual para repetir cenas de ciúme e agressões mútuas que todos já conheciam. Não era por isso que os convidados deixavam de ser simpáticos ao combate entre mãe e filhas. Eram discussões regadas à carne, álcool, cigarros e doces. Iniciavam invariavelmente com alguma observação maliciosa de tio Feliciano, cuja tolice e megalomania impulsionadas por alguns copos de cachaça já eram há muito conhecidas de todos. Com a sua chegada triunfal sobre o cavalo marrom tinha início à conversa animada que comandaria a festa dali em diante. “E aí, Ló, convidou o meu compadre?”, pergunta o velho mal pisa o chão. Sem perder o hábito ela estira o dedo médio em direção a tio Feliciano e dispara: “Vá tomar no cu, velho safado!”. Acontecimentos recorrentes como traições do meu pai e falta de sexo voltavam à memória estimulada pelo uísque e, no caso das filhas, pelo prazer de ver Ló, despojada das armas fatais da libido, com as quais enfrentou o marido e o mundo, ameaçar com a voz entornada de uísque: “Parem ou eu acabo já com esta merda!”. Não parávamos. Quase sem voz pulávamos de um xingamento a outro para depois, sem mais o que dizer diante da indiferença das outras mulheres, que mexiam as panelas num frenesi sensual dos quadris, escorregarmos para os nossos esconderijos: Ló engolia mais uma dose dupla e corria ao quarto dos fundos com a garrafa, dois copos e um maço de cigarros. A porta se abria como se alguém observasse de dentro e soubesse que ela iria. Era o meu irmão, o filho caçula que esperava. Já a minha irmã, se isolava num canto da sala e dava cabo da tigela de doce de leite saída do fogo naquele instante. Quanto a mim, corria ao banheiro com a valise preta e só saía de lá quando o calor entre as pernas havia esfriado.
A casa já não era a casa da filha mais velha. Há muito havia deixado para trás os afetos corrompidos. Mesmo assim, quando retornava aquela única vez no ano, era como se os ressentimentos se renovassem, não só entre mãe e filha, mas com os netos também. “Feche a geladeira, filho da puta!”, gritou a avó para o neto indeciso se pegava a garrafa amarela ou a roxa. “Beba mijo. Os refrigerantes são para o almoço”, ela diz e toma a garrafa da mão do rapaz. Virando-se para minha irmã ordena: “Leve embora esses frescos.” Às costas de Ló, minha irmã simula um chute em seu traseiro, abre a geladeira e entrega a garrafa ao filho que escorrega na ponta dos pés.“Esta é a última vez que eu venho aqui!”, diz minha irmã encaminhando-se para o carro com os filhos e a cadela, que ameaça morder o calcanhar de Ló. O mais velho, que não largava a necessaire de oncinhas na qual carrega o secador de cabelo, caminha lento e debochado. Vai atrás rebolando e de dedo do meio estirado para os que observam e dão gritos de “urra!”. Minha irmã, contorcendo-se de raiva atira na direção dos convidados uma caixa cheia das embalagens dos doces que havia comido. Em silêncio, e de queixo erguido, Ló passa por todos e se encaminha para o quarto. Fecha a porta e destrói os presentes que havia recebido de nós, suas filhas e netos. Não poupa nem os litros vazios do Old Parr que bebera em goles rápidos. Antes, porém, inclina-os na boca para descer as últimas gotas. O arremesso das garrafas quase atingiu a filha, que resolve voltar depois do cavalo de pau que ensaiou com os filhos na estrada poeirenta.
Cortar os alimentos, prepará-los com mexidas leves ou apressadas nas quais o corpo acompanha o manejo num ritmo violento e sensual, imprimia às conversas um jogo erótico e dramático no qual os desentendimentos entre Ló e nós, suas filhas, misturavam-se à comida igualmente os condimentos essenciais como o alho e o sal. Nada ficava por dizer na atmosfera dosada de gordura, álcool e açúcar. As conversas cresciam, inchavam como as claras em neve batidas pelas cozinheiras. Ameaçavam explodir igualmente a gula sobre os pratos ora doces, ora picantes, ora azedos. No ritmo crescente de acusações não prestávamos atenção ao que dizia a outra. Cada uma representa o seu monólogo como se o que dissesse fosse de grande importância para os que ali cortam, mexem, lavam, bebem, escutam, ou fingem escutar. A confusão atinge o ponto alto quando minha irmã abre a boca e puxa um par de dentaduras postiças impregnadas de resíduos de doce. Ela está transtornada. Treme, grita. A saliva faz chuvisco sobre as comidas expostas à mesa. “Todos perdidos!”, diz minha irmã com o dedo no buraco murcho sem os dentes. “E de quem é a culpa? Dela!”, aponta com furor para Ló, que ouve a história contraindo os músculos do rosto. “Sim, a Senhora é culpada!” A frase é cortada por um acesso de tosse. “Tragam água, batam-lhe nas costas!”, pede aos gritos uma das cozinheiras. Ló dá de ombros e bebe mais uma dose dupla.
Os pratos foram enfileirados na grande mesa retangular. Abro a caixa forrada com veludo e retiro os talheres junto com os guardanapos de linho vermelho. “Para a mesa, todos!”, ordena Ló. Minha irmã é a primeira a sentar à cabeceira num claro desafio a quem se atrevesse dizer que aquele lugar não era o seu. Foi ainda a primeira a fazer o prato antes mesmo dos convidados se acomodarem. Ló anda de um lado para o outro da mesa a encher os pratos com o mesmo controle de quando passamos por grande privação de alimentos: éramos proibidos de fazer nosso prato. Passam por suas mãos as travessas fumegantes e perfumadas. Todos repetem duas, três, quatro vezes, até não restar mais nada nas vasilhas. Bode, galinha, porco, bacalhau, feijão, arroz, farofa, saladas… Quarenta minutos e nem mais um grão de arroz sobre a mesa. “Tragam a sobremesa!”, Pede Ló ainda em pé. Levo ao centro da mesa a grande tigela de chouriço, doce preferido de Ló que ela faz questão de preparar com o sangue colhido do porco. Cinco minutos depois não havia nem mais uma colher da sobremesa.“Não deixaram o chouriço de Ló?”, perguntei ao perceber que ela ainda não havia sentado à mesa após servir os convidados. Estes, agora fartos e silenciosos, relaxavam em redes estendidas nos alpendres. Alguns fumam, outros cochilam. Os mais românticos dançam ao som de modinhas sertanejas. Ninguém se preocupa com a sujeira deixada para trás. Os filhos da minha irmã se fecharam no quarto com o celular e o secador de cabelo. Os meus dois vira-latas e as moscas tomaram conta da cozinha. Ló, de semblante fechado, tem o copo de uísque numa das mãos e o cigarro na outra. Está sentada na espreguiçadeira diante da louça suja. Há em seu rosto o tédio resignado do fim. Fuma bebericando a quinta dose dupla de uísque. Por fim, senta-se à mesa para comer os miúdos dos bichos. Divide com as duas velhas que lavam a louça os pés das galinhas e as vísceras do porco. Mal havia levado a primeira porção à boca ouve o grito da filha mais velha: “Meu Deus, o bolo! Tem que ter o bolo dos parabéns!” A cozinha ocupada pelos vira-latas e às velhas que chupam os ossos é invadida outra vez pelas mulheres que têm pressa em mexer, bater, amassar, coar, pois o tempo é curto e o bolo tem que ser servido antes do jantar. Não havia quem fosse à mercearia comprar os ingredientes. “Ló, vá até à venda! Compre farinha, fermento e morangos. Vai ser com recheio de morango.” “E uma vela no meio.” “Sim. Uma vela no meio.” “Os refrigerantes estão na geladeira.” “Uísque também.” “Uísque também.” “Vamos cantar o parabéns às sete.” “Quero a toalha vermelha.” “Sim, Ló.” “Quero muitas fotos no Facebook.” "Sim, Ló, o celular está carregado."
Faltavam alguns minutos para 19 horas quando a aniversariante apareceu na sala vestida de roxo. Eu a penteara e fizera a maquiagem com a intenção de deixá-la mais jovem. Ló tinha os olhos no grande espelho e gostava da própria imagem. A base escondera as rugas e o batom vermelho imprimira volume aos lábios murchos. “Grande dama!”, eu disse sem perceber que minha irmã havia entrado no quarto e observava: "Que coisa mais ridícula! Não adiante enganar. Todos percebem que não passa de uma velha sem vergonha!”, ela disse e se retirou. Ló endureceu na cadeira de frente para o espelho. Abriu enormemente os olhos e soltou uma gargalhada obscena. “Pegue o uísque!”, pediu de dentes serrados. Corri à cozinha e levei até ela a dose dupla do segundo litro. “Mais uma!”, ordenou. “Agora vamos!”, disse aprumando-se nas pernas bambas.“Ló Chegou!” “Viva Ló!” “Apaguem a luz!” Gritam os convidados. A vela é acesa e todos cantam o parabéns. Ló apaga a vela. A lâmpada é acesa outra vez e, sem que ninguém esperasse, meu irmão surge nu, de braços abertos e feliz. Sorrir para Ló. Ela, sem demonstrar surpresa, acolhe em seus braços o filho caçula. “Mamãe…”, “mamãe…”, “mamãe…”, ele repete a palavra jamais dita por mim e a outra filha.
Ana Barros
Ló tomava a primeira dose dupla de uísque daquele dia, fazia setenta e sete anos. Três filhos. Eu era a segunda, o terceiro, deixo para falar dele mais adiante. Dois netos, nenhum genro e um marido que desaparecera quando comemorávamos a Páscoa na casa da madrinha do meu irmão, comadre de Ló, que também fugira naquele mesmo dia. A fuga dos dois se tornou motivo recorrente de lamentações e brigas entre nós, mas não desculpas para cancelar a festa do aniversário de Ló. Há mais de dez anos reuníamos parentes e amigos que vinham de longe saborear os pratos de galinha e bode, cuja engorda se dava ali mesmo no quintal sob os cuidados de Ló. Além das duas filhas e dos netos, faziam parte da festa alguns tios velhos, muitos primos, compadres, comadres, afilhados e pouquíssimos amigos. Ló não fazia questão de tê-los por perto, nem naquele dia, tampouco nos outros. Na ausência deles eu era a única presença naquela casa que enchia uma vez no ano de pessoas com as quais não mantínhamos relações próximas. Vinham para comer, beber e participar das nossas brigas. Por sermos apenas ela e eu, sem muita conversa e, consequentemente, excesso de ironia e dissimulação desempenhadas na rotina silenciosa de duas mulheres com a idade há muito passada das cobranças do mundo, tirávamos proveito da reunião anual para repetir cenas de ciúme e agressões mútuas que todos já conheciam. Não era por isso que os convidados deixavam de ser simpáticos ao combate entre mãe e filhas. Eram discussões regadas à carne, álcool, cigarros e doces. Iniciavam invariavelmente com alguma observação maliciosa de tio Feliciano, cuja tolice e megalomania impulsionadas por alguns copos de cachaça já eram há muito conhecidas de todos. Com a sua chegada triunfal sobre o cavalo marrom tinha início à conversa animada que comandaria a festa dali em diante. “E aí, Ló, convidou o meu compadre?”, pergunta o velho mal pisa o chão. Sem perder o hábito ela estira o dedo médio em direção a tio Feliciano e dispara: “Vá tomar no cu, velho safado!”. Acontecimentos recorrentes como traições do meu pai e falta de sexo voltavam à memória estimulada pelo uísque e, no caso das filhas, pelo prazer de ver Ló, despojada das armas fatais da libido, com as quais enfrentou o marido e o mundo, ameaçar com a voz entornada de uísque: “Parem ou eu acabo já com esta merda!”. Não parávamos. Quase sem voz pulávamos de um xingamento a outro para depois, sem mais o que dizer diante da indiferença das outras mulheres, que mexiam as panelas num frenesi sensual dos quadris, escorregarmos para os nossos esconderijos: Ló engolia mais uma dose dupla e corria ao quarto dos fundos com a garrafa, dois copos e um maço de cigarros. A porta se abria como se alguém observasse de dentro e soubesse que ela iria. Era o meu irmão, o filho caçula que esperava. Já a minha irmã, se isolava num canto da sala e dava cabo da tigela de doce de leite saída do fogo naquele instante. Quanto a mim, corria ao banheiro com a valise preta e só saía de lá quando o calor entre as pernas havia esfriado.
A casa já não era a casa da filha mais velha. Há muito havia deixado para trás os afetos corrompidos. Mesmo assim, quando retornava aquela única vez no ano, era como se os ressentimentos se renovassem, não só entre mãe e filha, mas com os netos também. “Feche a geladeira, filho da puta!”, gritou a avó para o neto indeciso se pegava a garrafa amarela ou a roxa. “Beba mijo. Os refrigerantes são para o almoço”, ela diz e toma a garrafa da mão do rapaz. Virando-se para minha irmã ordena: “Leve embora esses frescos.” Às costas de Ló, minha irmã simula um chute em seu traseiro, abre a geladeira e entrega a garrafa ao filho que escorrega na ponta dos pés.“Esta é a última vez que eu venho aqui!”, diz minha irmã encaminhando-se para o carro com os filhos e a cadela, que ameaça morder o calcanhar de Ló. O mais velho, que não largava a necessaire de oncinhas na qual carrega o secador de cabelo, caminha lento e debochado. Vai atrás rebolando e de dedo do meio estirado para os que observam e dão gritos de “urra!”. Minha irmã, contorcendo-se de raiva atira na direção dos convidados uma caixa cheia das embalagens dos doces que havia comido. Em silêncio, e de queixo erguido, Ló passa por todos e se encaminha para o quarto. Fecha a porta e destrói os presentes que havia recebido de nós, suas filhas e netos. Não poupa nem os litros vazios do Old Parr que bebera em goles rápidos. Antes, porém, inclina-os na boca para descer as últimas gotas. O arremesso das garrafas quase atingiu a filha, que resolve voltar depois do cavalo de pau que ensaiou com os filhos na estrada poeirenta.
Cortar os alimentos, prepará-los com mexidas leves ou apressadas nas quais o corpo acompanha o manejo num ritmo violento e sensual, imprimia às conversas um jogo erótico e dramático no qual os desentendimentos entre Ló e nós, suas filhas, misturavam-se à comida igualmente os condimentos essenciais como o alho e o sal. Nada ficava por dizer na atmosfera dosada de gordura, álcool e açúcar. As conversas cresciam, inchavam como as claras em neve batidas pelas cozinheiras. Ameaçavam explodir igualmente a gula sobre os pratos ora doces, ora picantes, ora azedos. No ritmo crescente de acusações não prestávamos atenção ao que dizia a outra. Cada uma representa o seu monólogo como se o que dissesse fosse de grande importância para os que ali cortam, mexem, lavam, bebem, escutam, ou fingem escutar. A confusão atinge o ponto alto quando minha irmã abre a boca e puxa um par de dentaduras postiças impregnadas de resíduos de doce. Ela está transtornada. Treme, grita. A saliva faz chuvisco sobre as comidas expostas à mesa. “Todos perdidos!”, diz minha irmã com o dedo no buraco murcho sem os dentes. “E de quem é a culpa? Dela!”, aponta com furor para Ló, que ouve a história contraindo os músculos do rosto. “Sim, a Senhora é culpada!” A frase é cortada por um acesso de tosse. “Tragam água, batam-lhe nas costas!”, pede aos gritos uma das cozinheiras. Ló dá de ombros e bebe mais uma dose dupla.
Os pratos foram enfileirados na grande mesa retangular. Abro a caixa forrada com veludo e retiro os talheres junto com os guardanapos de linho vermelho. “Para a mesa, todos!”, ordena Ló. Minha irmã é a primeira a sentar à cabeceira num claro desafio a quem se atrevesse dizer que aquele lugar não era o seu. Foi ainda a primeira a fazer o prato antes mesmo dos convidados se acomodarem. Ló anda de um lado para o outro da mesa a encher os pratos com o mesmo controle de quando passamos por grande privação de alimentos: éramos proibidos de fazer nosso prato. Passam por suas mãos as travessas fumegantes e perfumadas. Todos repetem duas, três, quatro vezes, até não restar mais nada nas vasilhas. Bode, galinha, porco, bacalhau, feijão, arroz, farofa, saladas… Quarenta minutos e nem mais um grão de arroz sobre a mesa. “Tragam a sobremesa!”, Pede Ló ainda em pé. Levo ao centro da mesa a grande tigela de chouriço, doce preferido de Ló que ela faz questão de preparar com o sangue colhido do porco. Cinco minutos depois não havia nem mais uma colher da sobremesa.“Não deixaram o chouriço de Ló?”, perguntei ao perceber que ela ainda não havia sentado à mesa após servir os convidados. Estes, agora fartos e silenciosos, relaxavam em redes estendidas nos alpendres. Alguns fumam, outros cochilam. Os mais românticos dançam ao som de modinhas sertanejas. Ninguém se preocupa com a sujeira deixada para trás. Os filhos da minha irmã se fecharam no quarto com o celular e o secador de cabelo. Os meus dois vira-latas e as moscas tomaram conta da cozinha. Ló, de semblante fechado, tem o copo de uísque numa das mãos e o cigarro na outra. Está sentada na espreguiçadeira diante da louça suja. Há em seu rosto o tédio resignado do fim. Fuma bebericando a quinta dose dupla de uísque. Por fim, senta-se à mesa para comer os miúdos dos bichos. Divide com as duas velhas que lavam a louça os pés das galinhas e as vísceras do porco. Mal havia levado a primeira porção à boca ouve o grito da filha mais velha: “Meu Deus, o bolo! Tem que ter o bolo dos parabéns!” A cozinha ocupada pelos vira-latas e às velhas que chupam os ossos é invadida outra vez pelas mulheres que têm pressa em mexer, bater, amassar, coar, pois o tempo é curto e o bolo tem que ser servido antes do jantar. Não havia quem fosse à mercearia comprar os ingredientes. “Ló, vá até à venda! Compre farinha, fermento e morangos. Vai ser com recheio de morango.” “E uma vela no meio.” “Sim. Uma vela no meio.” “Os refrigerantes estão na geladeira.” “Uísque também.” “Uísque também.” “Vamos cantar o parabéns às sete.” “Quero a toalha vermelha.” “Sim, Ló.” “Quero muitas fotos no Facebook.” "Sim, Ló, o celular está carregado."
Faltavam alguns minutos para 19 horas quando a aniversariante apareceu na sala vestida de roxo. Eu a penteara e fizera a maquiagem com a intenção de deixá-la mais jovem. Ló tinha os olhos no grande espelho e gostava da própria imagem. A base escondera as rugas e o batom vermelho imprimira volume aos lábios murchos. “Grande dama!”, eu disse sem perceber que minha irmã havia entrado no quarto e observava: "Que coisa mais ridícula! Não adiante enganar. Todos percebem que não passa de uma velha sem vergonha!”, ela disse e se retirou. Ló endureceu na cadeira de frente para o espelho. Abriu enormemente os olhos e soltou uma gargalhada obscena. “Pegue o uísque!”, pediu de dentes serrados. Corri à cozinha e levei até ela a dose dupla do segundo litro. “Mais uma!”, ordenou. “Agora vamos!”, disse aprumando-se nas pernas bambas.“Ló Chegou!” “Viva Ló!” “Apaguem a luz!” Gritam os convidados. A vela é acesa e todos cantam o parabéns. Ló apaga a vela. A lâmpada é acesa outra vez e, sem que ninguém esperasse, meu irmão surge nu, de braços abertos e feliz. Sorrir para Ló. Ela, sem demonstrar surpresa, acolhe em seus braços o filho caçula. “Mamãe…”, “mamãe…”, “mamãe…”, ele repete a palavra jamais dita por mim e a outra filha.
Ana Barros
Natal, novembro de 2019.