Hans Baldung Grien, 1513 |
“Idade?” “Sessenta e cinco!”, respondeu a mulher do professor.
Aos quarenta, Cícero passou a disfarçar a idade no corte do cabelo conservando
uma franja de fios ralos para dissimular a calvície. Mudou o corte das roupas até
então costuradas por Adélia. Deu em andar com peças e acessórios adquiridos das
mesmas grifes dos jovens alunos. Tal
comportamento levou Camisa de Vento, punk
e estudante de filosofia, fiel discípulo de Cícero por considerá-lo o mais anarquista dos pensadores contemporâneos, a discursar violentamente
na aula em que o mestre aparece bem vestido
e com os cabelos tingidos de louro: “o
Senhor é a aberração do capitalismo!”, gritou cuspindo no chão. O incidente
não perturbou a frieza do professor, tampouco alterou seu humor ao constatar a
debandada da turma entre risos e pilhérias. Em vez de acabrunhá-lo, a crítica
do aluno deixou-o ainda mais vaidoso. Quem entrasse em sua casa naqueles dias se
deparava com um grande espelho pendurado em frente às estantes. Enquanto
pesquisa, contempla a imagem não menos de dez vezes. Aqui acolá vai até à
cozinha e diz para a esposa afogueada e com cheiro de cebola: “como rejuvenesci com esse corte!”
Adélia conhecia as manias do marido e aprendeu não duvidar nem valorizar o que
ele diz e, de uma discussão banal, se estender a brigas que só terminam quando
os vizinhos correm à janela a xingar “pare
com isso, professorzinho de merda!”, e ela, poupando-o de escândalos, fechar
a porta e correr aos pés de Santa Rita de Cássia. Adélia sabe que Cícero foge
do burburinho como fogem os ratos à menor suspeita de ataque. E foi para ele
que reservou o melhor cômodo da casa, do qual se responsabilizou pela arrumação
das centenas de livros e do silêncio absoluto conseguido ao isolar as paredes
com espuma. Conhecer era o objetivo
de Cícero. E este ele só conseguia desprezando o mundo das coisas vulgares, como eram as relações com a família e os vizinhos.
Adélia apoiava o marido, porém não dava importância às especulações nascidas desse
orgulhoso solitário. Nenhuma
curiosidade a motivava entrar no ambiente abarrotado de papel que, só ele, desejoso
de alturas, tinha o acesso. Orgulhava-se
do saber do marido e isso era bom, tão
bom quanto sentar no sofá depois de lavar a louça para ver a novela das nove.
Era naquele lugar cheio de livros novos e velhos que Cícero passava o tempo
quando não dava aulas. Ao se impressionar com uma teoria e dela especular um conceito
que superasse o de seu autor, não largava o estudo enquanto
não tivesse a certeza de um raciocínio inteiramente seu. Apesar de reconhecidas
pela academia, as teorias de Cícero jamais saíram das paredes universitárias.
Entre os alunos não passava do primeiro ano. Passados os dois semestres, agora familiarizados
com a comunidade acadêmica, optavam por professores menos herméticas e adeptos
das redes sociais. Cícero era inimigo das novas tecnologias, o que levou Camisa de Vento pela segunda vez atirar
farpas ao ouvir do professor que “os
homens do verdadeiro saber preferem o papel”. “Verdadeiro saber é o caralho!”, rebateu o aluno anarquista abaixando
as calças.
Portas e janelas fechadas. Cortinas descidas. Som desligado. Crianças
caladas. Terminada a averiguação do lar a mãe pega os filhos e se fecham no
quartinho dos fundos. Ali assistem TV até o momento em que o professor grita da
porta: “o lanche!” Todos, menos os calouros, conhecem e comentam o comportamento do professor de História da Filosofia. E, sabendo da antipatia dos
veteranos, Cícero aproveita o intervalo de um ano para viajar a congressos na
companhia das novatas deslumbradas com o mestre.
Não raro alguém pergunta a Adélia por que não é vista nos eventos com o marido.
Prontamente ela recorre a casa como motivo para não se ausentar. O domínio da vida privada havia se
tornado tão exclusivo dela que Cícero só foi saber que os filhos frequentavam a
Igreja Universal quando viu o caçula submetido à sessão de espancamentos numa
das reportagens em que analisava seitas religiosas. Na matéria, o pastor
expulsa o demônio do corpo do filho do
cientista ateu. “Malditos alienados... A culpa é sua!”, diz à mulher e ali mesmo
esquece o assunto. Sua vida tinha objetivo maior que o de convencer o filho da
não existência de demônio. Além do mais, terminava a sua tese de doutor. Faltando uma semana para
submeter o trabalho à banca mandou encadernar
o volume de 600 folhas. Ao voltar com a papelada debaixo do braço olhou Adélia
com um largo sorriso de incontida vaidade e disse tomado de soberba: “terminei! São 600 páginas de conhecimento
autêntico!” “Posso dar uma olhadinha? Queria...” Adélia não terminou a frase.
“Você? (kkkk...) Não entende uma vírgula!”,
disse comprimindo o livro ao peito numa atitude infantil de quem protege o
brinquedo da cobiça da coleguinha. Adélia ficou paralisada. Não que fosse
novidade o desprezo dele pelas suas opiniões, mas por sentir naquele exato
momento algo diferente das outras vezes em que foi insultada por não acompanhar
o raciocínio complexo do pensador. Sente ferroadas no corpo. Arrasta-se
até o sofá e cai semiconsciente. Volta a si quando Cícero bate a porta, já um
hábito quando foge de alguma encrenca doméstica. Por alguns instantes pensou ser
um pesadelo. Contudo, ainda era dia. Passa as mãos nos olhos molhados e grita da
janela pela qual ainda o vê agarrado aos papeis em direção à rua: “filho da puta... Enfie seus papeis no cu!”.
É a primeira vez que sente a dor vazia do abandono. Não consegue organizar os
pensamentos que anarquizam o cérebro até então cheio, ordenado na vontade do
outro. O coração bate descompassado, a garganta se fecha na angústia suicida.
Mas não vai se matar, acredita no inferno e em almas penadas. A partir dali as
noites chegaram pavorosas: há sempre alguém a rir da burrice dela. Ora é Cícero, ora o seu professor que, lá atrás na
escolinha, por mais que repetisse que “nóis
quer” é errado, Adélia repetia “nóis quer”.
Esperava que, ao casar com o professor, deixaria de dizer “nóis quer”. Porém ela continuou com a sua gramática particular e o professor fingiu que era surdo. Não só
as noites, os dias também ficaram insuportáveis. O tédio ocupou o lugar da satisfação
de dona de casa, único prazer até ali conhecido. Adélia não entende a agonia que
faz de repente a vida grande demais, absurda e à beira do desespero. A
escuridão na qual se debate, no entanto, dá a ela o clarão real do qual viu a
mãe saltar. “Vou embora!”, pensa sem
entender que a mãe, diferente dela, fugira com outro homem e, graças a essa decisão,
aprendeu que a vida chega para uns por linhas
quase apagadas. Mas Adélia não era mulher de voltar ao passado e de lá sair
com um presente ativado. A experiência exigia elaboração mental complexa,
condição nula para quem se deixou apagar feito fósforo riscado. Não sentia admiração
pela trajetória da mãe. E logo
esqueceu a mãe. Foi a partir daí que, tomada do ressentimento nascido no pântano
da rejeição, passou a observar Cícero nos mínimos movimentos. Queria a
confirmação de que ele era o homem com quem dividiu a cama por tanto tempo. A
cama, mobiliário sagrado, acolhida permitida por Deus para dois corpos erotizados, transforma-se em símbolo da depravação fora do casamento e do enfado
ao longo deste.
Dois meses depois de conhecer o namorado a mocinha leva o estudante de
filosofia para morar no pequeno apartamento de três cômodos. Paga as despesas
com o salário de balconista. O orgulho em dividir a existência com um homem culto e de futuro garantido fez com que
ignorasse que em todos habita um eu
em pano de fundo. No entanto, esse eu do
amado era escancarado, exigiu dela exclusividade e obediência. O que veio
depois já se sabe: casamento, filhos e demissão do emprego de balconista. “Tenho filho pra criar e marido pra pensar”,
repete o refrão ao balançar o menino no berço. Adélia não consegue parar de
pensar no Cícero humano que acaba de conhecer, o Cícero anterior ao doutor Cícero que jamais existiu a não
ser na imaginação da moça romântica. O ódio que se instalou a partir daí não
permite que faça um julgamento dos valores do homem de ciência. Faz, sim, a
análise devastadora de mulher enganada
cuja vingança é tomar de volta as qualidades criadas de suas próprias
necessidades. É tomada por essa nova percepção do marido que ela vê
escandalizada cada detalhe do corpo surpreendentemente feminino de Cícero. “Será fresco...?”, pergunta ao
emaranhado de suposições trazidas pelo eu
do marido até então escondido dela.
“Sr. Cícero, por gentileza, tire a roupa...
óculos, relógio... Vista esta bata com a fenda para trás. Usa dentadura? Tire-a!”
Cícero
não se preocupou em saber se amava Adélia. Ela estava ao alcance das mãos, isso
era o suficiente. Além de não ter tempo para digressões sentimentais era bom
ser cuidado por uma mulher dócil. Porém, apesar da ausência de revolta, estava
próximo o fim da história a dois do casal que, desde o início, se manteve divorciado. Adélia sentiu esse fim como
algo perturbador que resolve um dia assumir o comando dos nervos. Não era aquele
fim pelo qual os corpos e os bens são divididos com grande cólera porque a paixão
e o ódio subverteram a ordem. Mas o fim através do qual se enxerga de vez o
outro e a ilusão dá lugar à dança dos espectros cujo espasmo adentra noite e
dia na ânsia de revelar a verdade. Chegou
enfim o momento do choque do ressentimento contra o ídolo de papel. Adélia logo abandona a formalidade da mulher digna com
a qual desempenhou o papel de esposa.
Recorre agora à ironia quando se dirige ao marido: “doutor Cícero, sua ração está na mesa!” “Doutor Cícero, suas putas no
telefone!” “Doutor Cícero, já lavei seus molambos...”.
“Sr. Cícero, tirou a dentadura?”,
pergunta a atendente ao encaminhar o paciente à sala do exame.
Adélia,
que alternava os olhos entre o piso branco e o marido, ao ouvir a atendente levantou-se
num pulo e correu em direção aos dois. Teve que se segurar na poltrona para não
desmaiar ao vê-lo dobrado com uma mão prendendo a fenda traseira da bata e a outra
tapando o buraco em que se transformara a boca. Olhou-o como se nunca o tivesse
visto. Não era o cientista vaidoso quem estava à sua frente, mas um velho banguela,
nu e cego dentro de uma bata ridícula. Sente a cabeça rodar e sai para tomar ar.
Ao retornar não consegue controlar o desespero e grita engasgada de nojo: “o doutor não tem os dentes!”. Ninguém
ouviu nada na sala em que todos deslizam os dedos na tela do celular ou ouvem
música de fones nos ouvidos. Depois de se acalmar com um copo d’água trazido
pela atendente e ver que ninguém dava atenção ao seu drama, Adélia tira o terço
da bolsa e reza pra lá e pra cá no corredor.
Quando
soube do câncer Cícero tentou se matar arranhando os pulsos com uma lâmina de
barbear. “O doutor está proibido de se matar!”,
disse Adélia vestida de nova autoridade. Dali em diante fez questão de cuidar dele.
“Ninguém cuida do meu marido como eu”, teria
dito à cunhada antes de despedi-la na porta. Era um poder não sobre o intelectual,
mas sobre um moribundo sem mais o valor moral que valesse a simpatia da esposa.
Era outro agora o poder que ela desempenhava sobre o homem derrotado não pelo
câncer, mas pela boca banguela. Cícero se tornara igual a todos os homens que
caem doentes nas mãos de esposas velhas, sabedoras da intimidade revelada por
completo na rotina de um hospital. São esposas velhas que cuidam de seus homens com a ira velada de mártir. Esquecem a dor do Cristo no manejo da mão pesada
sobre o corpo impotente que de algoz passou a vitima. Adélia, no acerto de contas
de dois derrotados, ela, por se descobrir num deserto sem futuro, ele, empurrado
que foi para fora do presente, se demora no ardil dos suplícios. Estes, tolos e
amargos chás de cascas de pau, papas sem açúcar empurradas goela abaixo, supositórios
enfiados sem nenhuma delicadeza, banhos frios com mãos sem pudor que limpam o cu do doente sem lembrar jamais que um
dia desejou aquelas partes do macho liquidado. Zomba, junto às amigas do Terço das Mulheres, da trouxa morta caída entre dois ovos
imprestáveis. Afora as pequenas vinganças de Adélia no manuseio da higiene e alimentação
de Cícero, este ainda amarga a solidão do quarto não mais de um cientista
rodeado de livros e da aura de gênio,
mas o quarto esterilizado de um doente terminal. Assim que adoeceu, a família
encarregou-se de dar fim à tranqueira do
doutor. E foi assim que o acervo de mais de três mil títulos foi retirado
da casa e queimado no quintal pelo pastor acompanhado dos dois filhos do casal.
A justificativa apresentada pelos três religiosos foi a de que os livros
representavam o diabo e por isso
tinham que ser destruídos. “O diabo que
habita esta casa tem um nome: doutor Cícero!”, sentenciou o pastor, o mesmo
que havia exorcizado o caçula na TV, ao riscar o fósforo sobre a montanha de
papel encharcado de gasolina. Adélia acompanhou o desfecho com uma fagulha de
gozo: “há muito eu devia ter feito o
mesmo!”, disse aos botões.
Ana
Barros
Natal,
20 de julho de 1997.
(concluído em 02 de agosto de 2018)