Durabilidade
sem descarte já foi sinônimo de sobrevivência de costureiras e artesãos. Infelizmente,
vergonha dos meninos que eram obrigados a usar a mesma calça de fustão até
virar pano de prato ou cueiro de menino novo. As precatas, depois de muitas idas e voltas à oficina para repor a meia-sola,
finalmente transformadas em molambo, viravam rabicho para pendurar chaves no
prego da sala ou coleira pra prender o gato ladrão. Assim mesmo: precatas. Foi dessa forma, do verbo
precatar [prevenir, acautelar], que o popular, para proteger os pés de picadas
de inseto e furada de espinhos, passou a chamar chinelo de dedo, aquele de uso
diário que faz “lepe-lepe” no soalho de tijolos. Ao nascer, a meninada já se
apresentava de precatas nos pés. A
vizinhança com algum artesão facilitava o acesso até ele que, de tanto tirar
medida e bater sola, acabava sem enxergar os centímetros da escala. O ofício de
décadas era enfim abandonado, ou na melhor das hipóteses, passado de pai para
filhos se estes também fossem artistas.
Pobres
e numerosas, as famílias passavam longe das lojas, em número pequeno e
exclusivas da cidade grande, quando a
roupa encolhia e a sandália deixava o calcanhar de fora. E, diante da falta de
dinheiro e da impossibilidade de copiar a moda urbana, a ordem era passar o que
não cabia mais ao irmão da frente, cujo manequim tinha que se adequar ao sexo e
ao tamanho da herança. Muitas vezes a
saída era empurrar pano molhado para aumentar, ou arranjar calços para diminuir
o calçado. Não havia outra escolha. Era ficar nu e descalço se invejasse a
roupa e os sapatos dos filhos de...
A
indústria com a sua peculiar multiplicação dos objetos só apareceria décadas mais
tarde quando os artesãos já haviam desaparecido por morte ou abandono dos
clientes, uma vez que estes passaram a comprar sandálias mais em conta, de um
tipo de material barato e abundante: o plástico. Este substituiu a manufatura do
couro e, consequentemente, das precatas.
Roídos de despeito, os filhos do pobre olhavam os pés de quem chegava da capital
com as suas “chinelas japonesas” tão ao gosto dos orientais em seu costume
milenar de alpercatas de dedo. Em sentido contrário as nossas precatas, resistentes, artísticas no estilo
cangaço, confortáveis no arrastar sensual do nordestino, adequadas ao clima e
vegetação áridos, eram abandonadas em nome da variedade, da cor e do preço. Foi
assim que [do nada] apareceu à porta da rua o caixeiro viajante, vendedor ambulante
da época, a abrir a enorme mala de madeira apinhada de chinelas de todas as cores.
O preço é irrisório comparado com o valor cobrado pelas precatas feitas à mão e sob medida. Mas agora todos podiam ter uns
três pares no correr do ano. E cada irmão com os seus. A abundância do
plástico, que daí em diante substituiria acessórios, utensílios e uma
infinidade de quinquilharias, não quer dizer que a situação financeira das
famílias tivesse melhorado: continuavam pobres e numerosas.
Além
de ser objeto de vida curta, a nova sandália não tinha conserto, não havia meia
sola nem oficina de reparo para ela que, em vez de rabicho ou coleira,
jogava-se em algum terreno por perto. As precatas
[duráveis] davam passagem à moda das coisas efêmeras cuja produção em massa
obedece a preço, imitação barata e quantidade de acordo com a pressa que cada um
tem em se desfazer do que não dá mais prazer ou do que quebrou antes mesmo de
ser pago ao mascate, que reaparece um mês depois para cobrar trazendo na mala mais
cores e novidades. E foi a partir do despertar de que as precatas haviam perdido a condição de objeto único e durável que a crença, agora, estava na
multiplicação e infinita mudança das coisas.
O
plástico, em sua diversidade de formas e utilitários, contribuiu [e ainda contribui]
na conquista de mãe e filhas da libertação dos utensílios domésticos cujo
manuseio significa fadiga, cansaço e não prazer. Por ser desde sempre domínio
das mulheres, os afazeres da casa, bem como pequenos mandados, eram invisíveis
ou desprezados como “coisa de mulher” pelos homens: pai e filhos. Até mesmo as precatas esquecidas debaixo de um móvel qualquer,
ou num canto de parede, levavam os homens
de casa a gritar: “Rosinha, ô Rosinha, traga aí minhas precatas...!”.
Ana
Barros
Natal,
25 de abril de 2017.