De novo era Ano. Eu acabava de fazer setenta e cinco
anos e descobria, ali, no Réveillon
de oitenta e dois, que havia esquecido a
sociedade. Não que eu tivesse de esconder algum complexo de baixa estima, padecesse
da rejeição dos meus camaradas ou tivesse enlouquecido da indiferença do mundo:
nada disso era conveniente ao homem que jamais tivera fé e convicções em
relação a qualquer coisa ou sentimento. Ateu, assim fui mesmo quando acreditei.
Pois bem, naquele Réveillon eu estava
lúcido e vazio. Vazio das confusões mentais com as quais estendi a minha loucura
no mundo como extensão de mim. Aliás, uma extensão deveras inútil uma vez que
sempre estive sozinho quando pensei ser com um, dois, três... A minha mulher,
que não conhece vazios, diz que sou um egoísta, um misantropo. “Nem uma coisa
nem outra”, respondo desinteressado em levar adiante assunto até pouco tempo
motivo de discussões azedas das quais eu saí sempre derrotado e com a sensação
de ter engolido uma pedra. Apesar de termos uma pequena diferença na idade compreendi
que até ela, companheira de 40 anos, jamais havia sido outros senão ela mesma. “Ser
outro é tarefa maldita que exige encher e esvaziar o estômago o tempo todo”,
dizia ela simulando vômito. Tive que passar muitos Réveillons para chegar a
esse entendimento: por que não sabia desde sempre a verdade sobre o peso de
imaginar-me múltiplo? Quis lançar a culpa sobre minha insensatez: não fui eu
quem arranjou os encontros, conversas, intrigas e rompimentos? Não fui eu quem
inventou estratégias para forjar uma relação de amor? Sim, fui eu! E não podia
ser diferente se o ímã desprotegido que chama à pele as migalhas da afeição, agora
gasto, despenca e cai do corpo fechado. Pois bem, em vez do tédio no qual
mergulhei em todos os festejos do Ano
Novo, aquele de oitenta e dois foi incrivelmente diferente e feliz.
Diferente pela sensação que ali
nascia sob a qual eu enterrava de vez os mortos
que haviam me obrigado à gula e à frivolidade em todos os Réveillons até ali.
Feliz, pela alegria até então desconhecida de ser irônico em vez de amargar o
tédio. Aprendi ali a gozar com a ironia que aniquila qualquer vestígio de
seriedade que imaginei haver entre mim e os outros na entrada de Ano Novo. A prova da felicidade estava
ali à minha frente: ao redor da mesa. Todos de branco, risonhos e aparentando
jovialidade como se a festa de final e início de calendário fosse naquele dia
exclusivo a primeira de nossas vidas cansadas. Quantas vezes ainda iríamos
repetir a data que, em vez de alongar a existência, encolhia mais e mais os nossos
dias de futuro consumado? Os mesmos pedidos, os três pulinhos na onda do mar,
as oferendas a Iemanjá, a lentilha, a romã, os abraços doídos entre músculos fracos
e velhos... Era ao tempo que rendíamos graças desde a primeira confraternização.
O tempo, agora zerado da ilusão de que o novo nasce uma vez mais entre o
anoitecer e o amanhecer de um único dia. Estourei o champanhe... Enchi-me da
felicidade de todos repetindo os gritos e urras. A minha alegria era tão falsa
quanto o brilho colorido dos fogos de artifício queimados a alguns metros da
praia. E foi naquele Réveillon que enterrei de vez a fé sem fé que me levara a
exaurir qualquer possibilidade de começo ou de fim. Naquele encerramento de
mais um calendário eu compreendi que no lugar da necessidade de limite e ilusão
de começo tínhamos a vastidão aberta do meio dia que não conhece vigília nem
sono. Lembrei com gratidão as palavras do poeta Pópó, a quem jamais dei ouvido,
a quem nunca tive o atrevimento de convidar para o Réveillon. Ele, invariavelmente
bêbado no último dia do ano, diz para a plateia de amigos no bar A derrota: “pode o padre repetir em
todas as Missas do Galo que o novo ano começa. Pode a ciência inventar fórmulas
e oferecer eternidade aos homens, mas enquanto houver dia e noite eu estarei bêbado
e sem tédio.” O tédio, que não suportou a ação continuada das horas debaixo do
esplendor de fogo àquela hora do dia primeiro, deslizou sonolento entre os convidados
crentes de começo.
Ana Barros
Natal, Jan/2016