Em tempo
de crise e saco vazio Tutu recorre aos artifícios de toda mãe pobre com uma
penca de filhos correndo atrás: colhe o que tem em algum canto da casa e
prepara a comida para as crianças com olhos fixos na porção que cabe a cada uma.
Trabalhadora, ela mantém ativo o roçado de mandiocas e o galinheiro cheio de aves
em quarentena para evitar o gôgo antes de serem abatidas e seus ovos colhidos pela
menina franzina, que provoca um barulho medonho ao misturar-se às galinhas
doidas. Um dos pratos favoritos nesses dias minguados é o beiju que Tutu
prepara com a graça e o manejo de uma índia cabocla. Ali, de frente para a
porta da cozinha, a terra semeada no inverno e já com suas manivas
transformadas em robustas raízes, ela toma conta do facão e do balaio e
desaparece no verde brilhante das folhas. Volta minutos depois com as unhas
entupidas de barro e a cabeça pendida com o peso das mandiocas. Apressada,
despeja o alimento no chão e descasca com a mesma rapidez de nossos olhos ansiosos
e famintos. Tutu faz todo o processo com as mãos: descasca, rala e espreme a
massa homogênea em um pano de saco para retirar o suco azedo e mortal da raiz.
O beijuzeiro esquenta sobre as labaredas do fogo de lenha. Algum tempo se passa...
Surge à nossa frente uma pilha de discos brancos, quentinhos, macios e
deliciosos. Dormimos saciados e felizes, pois nada na escuridão do sono dá mais
prazer que o estômago cheio.
A
criatividade da cozinha precária da minha infância não para por aí, entre o
vegetal e o fogo. A ela junta-se a bacia de ágata, guardada cuidadosamente no
armário com os ovos apanhados do ninho das galinhas. Como dizia meu avô Chicão,
“você não precisa das coisas só uma vez”, deixamos a proteína das aves para o
dia seguinte, quando vamos ter à mesa “malassada”
ou “cabeça de galo”. Com três ovos, gordura animal e algumas colhes de farinha
de mandioca, a quantidade de comida se multiplica em milagre de mãe. Fácil de
fazer e com todos os ingredientes trazidos do entorno da casa, a “malassada” é
prato nobre ao paladar virgem de outros sabores que não os inventados por Tutu.
Graças a ela podemos nos dar o luxo de variar o cardápio, principalmente no
jantar, quando a comida é mais leve que o almoço, este, sempre o mesmo: feijão
ou favas, farinha de mandioca, arroz, jerimum, batata doce, carne seca assada
na brasa ou miúdos de porco torrados na banha, ou ainda, aqui acolá, um preá ou
um camaleão capturado pela mulher de instintos pouco civilizados. Enjoados de alternar
beiju e “malassada”, nossa mãe pergunta para nos agradar: “que tal hoje uma
cabeça de galo?” Comemos o pirão de ovos batido na tigela branca de bordas
rosa, peça salva pelo tempo e uso no preparo do pirão de galinha, dieta
obrigatória no resguardo dos cinco filhos. “O que é cabeça de galo, mãe?”, pergunto
procurando a cabeça do macho da galinha dentro da panela. Depois de descobrir a
verdade, ou seja, que o nome pomposo dizia respeito ao vulgar pirão de ovo, em
nada semelhante à nobreza real da linda cabeça adornada com uma crista vermelha
imponente, passo a não querer “cabeça de galo” no jantar.
Mas o
tempo adiantou cinco décadas e nunca mais voltei a comer, ou fazer, “cabeça de
galo”. Não que eu despreze o prato tão nosso, mas por não gostar de ovos
mergulhados em caldo com tempero. Cheguei mesmo a esquecer do prato da infância
pobre e criativa ao lado de Tutu e de meus irmãos. Porém, a memória reserva as
melhores descobertas quanto mais nos distanciamos do presente maravilhoso. Foi
assim que, de repente, ouvi o garçom dizer depois de indagado sobre o cardápio
daquela noite em São Luis: “temos caldo de ovo,”... “Caldo de ovo?”, eu repeti
ansiosa por saber o que era aquela comida de nome duvidoso e ralo. Alguém disse
“é caldo da caridade”. “Não é cabeça de galo?” perguntei surpresa e trazendo à
memória o cheiro e o gosto de ovos misturados ao alho, à cebola e o cominho lá
de casa. Não quis arriscar na escolha, fiquei com o sanduíche de nome
esquisito: quebra anzol, o mesmo nome do restaurante. Os demais pediram “caldo
de ovo”. E não é que era mesmo “cabeça de galo”!
Em todos
os restaurantes nos quais fizemos refeições em nossa permanência na cidade,
estava lá o prato da minha infância. “Cabeça de galo”, ou melhor, “caldo de
ovo”, quem diria, é prato importante da cozinha do Maranhão.
Ana
Barros
Natal, 30
de junho de 2016.