Guardo o “Almanaque do amor”, presente de um antigo namorado, com o
mesmo carinho com que conservo a mobília gasta e fora de moda. O Almanaque do
amor é completamente obsoleto nesses dias de amores efêmeros e diversidade de
amar. Mas a sua capa cor de rosa em formato de revista, ilustração ingênua de
corações flechados por Cupido obriga o retorno aos casais que viveram a
idealização do amor em várias épocas: Adão e Eva, Dante e Beatriz, Sartre e
Simone, Henry Miller e June, Lampião e Maria Bonita, Romeu e Julieta, Tarzan e
Jane, Dirceu e Marília, Isis e Osiris e tantos outros casais que marcaram o seu
tempo tanto na existência quanto na literatura. O subtítulo do livro, “no fluxo
da utopia”, dá a dimensão da fragmentação no lugar da “cristalização” das
promessas de amor, termo encontrado por Stendhal, conhecido pela intensa
sensualidade na vida pessoal e de seus personagens, para definir a quinta etapa
do nascimento do amor. Nem mesmo o autor de “O vermelho e o negro” e “Do amor”,
tampouco seus protagonistas mais intensos conseguiram a proeza da permanência
do amor. Em todas as histórias de amor há o momento do encanto, da certeza, do
cristal e, no fim, da quebra no fluxo que nos devolve ao vazio da alma até
então preenchida dos mais doces e terríveis estados de excitamento. Mas que
quer dizer “no fluxo na utopia”? Paradoxalmente, para ser amor este (ainda) tem
que ser sofrido e inatingível, pois, intuitivamente, os amantes sabem que o
amor fracassa, que fica entre o desejo e a frustração da impossibilidade. Para
o apaixonado (a), quanto maior a dor da conquista maior a entrega, mesmo que a
amada (o) sequer imagine os devaneios de uma mente febril. Um exemplo famoso e
patético desse amor que se faz motivo existencial em meio à depressão e o tédio
é o amor inventado por Dom Quixote pela imaginária Dulcinéia, devaneio mais
real que as quimeras do amor-paixão, no qual tudo ilude e nada permanece.
Amamos, e queremos de imediato selar compromisso, criar laço, liga, trocar
alianças, juntar as roupas na mesma trouxa. Situações criadas para aprisionar o
que não deixa prender. Tão fugaz quanto o tempo, o amor, que toma forma de
cristal, derrete, desaparece na correnteza gelada. E aí, como lidar com o vazio
deixado no corpo que pensava conhecer o pleno entre a terra e o céu? Como
retornar à miséria mundana sem os transportes para outras terras onde a
natureza é feita de deuses e deusas jovens? Sim, os casais do Almanaque do amor
são jovens enquanto dura o encantamento, exceção de Sartre e Simone de
Beauvoir, que envelhecem juntos, porém em casas separadas. Há entre eles um
pacto de cumplicidade filosófica, existencial e literária no qual o erotismo,
mais cérebro que sexo, torna-se (verbo muito usado por Simone na vida processo)
mais companhia, intimidade entre iguais, atingindo elevado nível de amizade,
podendo ser definido também como amor, mas não mais o amor-paixão. Este Simone
dedica de verdade, e longe das luzes da razão, ao escritor americano Nelson
Algren, com quem viveu o amor na primeira fase, aquele da sedução e completo
esquecimento de si, pois o outro chegou e ocupa todo o espaço vago. Apesar da
força que atraiu o homem Algren à mulher Simone, fazendo com que esta, mesmo em
Paris e ele em Chicago, o chamasse de “meu esposo” e carregasse com ela até a
morte uma aliança de prata na mão esquerda, trocada com Algren, a filósofa
escolheu o amor frio e mental do filósofo francês. O amor que, sendo eles
ateus, jamais confirmaram diante de um padre, mas que cumpriram como
experiência possível entre dois iguais, permaneceu “até que a morte nos
separe”. O casal mais famoso do mundo ocidental moderno não quis ter filhos nem
vida doméstica em comum. Sabia não por experiência, mas por leituras de livros
e de comportamentos analisados à exaustão, quanta mentira há nas relações entre
homem e mulher. Negaram com veemência o romantismo rosa atravessado de
infortúnio, doença, hipocrisia e traições. Se Simone teve amantes, Sartre
também teve. Desconheciam a palavra traição. Havia entre eles a ética da sinceridade,
a vida construída para além da sensualidade, a vida plena de cumplicidade entre
dois espíritos livres que somente a morte pode separar. O Almanaque do amor
trata de outras duplas famosas do mundo das artes, da filosofia e da literatura
que, longe de racionalizar o amor, quiseram mesmo foi viver a inconsciência e
inconsistência dionisíacas. O mais feliz de todos os amantes embriagados nas
volúpias de Baco foi Dom Quixote, cuja história com a donzela Dulcinéia del
Toboso infelizmente não consta no Almanaque do amor. Louco, o fidalgo se mantém
íntegro e fiel escudeiro ao que há de divino no mundo: o amor de uma mulher.
Mas a lucidez, ao contrário do efeito provocado no casal existencialista
francês, vem e atrapalha. É ela, a razão, que fatalmente devolve o homem comum
à vida sem graça, à vida cotidiana sem o engano que faz o amante, a amante.
Ana Barros
Natal, 12 de junho de 2016.