Tardezinha.
De repente o sol morre entre as nuvens negras e carregadas. O vento varre as
ruas. Batem portas, janelas. Arrancam árvores e postes da iluminação. A noite
precipita-se sobre homens, mulheres e crianças abandonados à vontade indomada
do mundo. Mamãe se benze três vezes de frente para o oratório. Acende os
lampiões de querosene com os quatro filhos agarrados à saia. Eu, caçula, tremo
de medo. Perguntei soluçando a meu irmão mais velho se já era o começo do fim.
Ele, vendo o meu espanto, aproveita para me deixar ainda mais aterrada: “claro
que é. A primeira vez não foi com fogo, pois, agora é com água”, disse sem se
importar com o meu coração domado nos princípios do Catecismo e do Caminho do
Céu, os quais eram lembrados todas as noites antes de dormir por mamãe sentada
à beira da nossa cama. Purgatório, inferno, diabos, apocalipse, ranger de
dentes, palavras carregadas de certeza incontestável e do medo com o qual
nossos pais nos mantinham perto deles obedientes e covardes. Mas a minha covardia
teve fim quando baixou na cidade um circo cujos atores representavam as
tragédias de um tal de Shakespeare. Até então eu só conhecia o filme
A Paixão de Cristo, exibido na pracinha no período da Semana Santa, o qual
reforçava ainda mais a minha angústia já que as imagens haviam saído dos livros sagrados, únicos na pequena estante improvisada com caixotes de maçã colhidos na feira, estavam agora ali, na tela, com som, sangue, suor, violência e todos os
truques necessários à imitação do real. Em vez de ilusões e de sentenças
medonhas de além mundo, os atores do circo gozavam de todos e de tudo, não
poupando o padre, o rei, a polícia, os políticos, tampouco as famílias nobres, das quais copiávamos
lá em casa os exemplos de conduta e castidade, pois meu pai não queria saber de
filho ou filha imitando “a ralé”. Fui algumas vezes ver o espetáculo. Fui
escondida de meu pai. “Moça de família não vai a circo aprender imoralidades”,
dizia ele quando insistia conhecer o palco mambembe. Era ponto final. Mas quando os atores foram embora levando com eles o
riso e a dúvida, deixaram em mim também o riso e a dúvida, pois foi aí que
conheci um tal de Shakespeare. Paixão à primeira vista.
Ana
Barros
Natal,
02 de janeiro de 2015.