quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Casquinho

Dia desses vi no programa de televisão a mulher elevada à estrela por ter em casa um bicho de estimação fora do comum: uma cabrita. Nada demais a não ser o fato da mulher, puxada pelos pinotes da pequena cabra, repetir o tempo todo, "filha, venha pra mamãe" e apresentar o quarto da “menina” ao telespectador ávido de frivolidade como se fosse o assunto mais interessante do mundo. Do lado de cá imaginei se o espaço, suficiente para acomodar um casal, equipado de cama de gente, armários, banheira, muitos perfumes, cosméticos, luzes coloridas piscando no teto e música para relaxar a “filhota”, ficava atrás do quarto da filha de verdade, “irmã” da cabra.

Estimar bichos como cabrito, porco, cobra, galinha, iguana, rato, lagartixa, sagui, ou até mesmo corvo, é bizarro, porém, compreensivo entre aqueles com inclinações afetivas mais ao céu da irracionalidade do que ao inferno da razão. No entanto, que dizer de alguém que tem um sapo cururu como íntimo, ao qual dedica longos papos, amor e afeição? Pois bem, na crônica "O sapo cururu", de José de Oliveira Ramos, http://www.luizberto.com/enxugandogelo-jose-d…/o-sapo-cururu, conhecemos Casquinho, um cururu amado não por ser belo, dócil, ou mesmo impulsivo como é a cabrinha bebê, mas por defender o pote da água de beber de grilos, moscas, baratas e outros insetos ao gosto dos sapos.

Temos que ler o texto até o fim para sentir com João, o "pai" de Casquinho, a intensidade de amor e tragédia capaz de levar ao desespero aquele que sente para fora do que é humano. Confesso que passei dias impressionada com a pequena história, até escrever esta crônica, não pela insensatez do dono do cururu que, bêbado, o espanca até à morte por ter deixado um grilo mergulhar na água por ele vigiada dia e noite, mas pela condição de mártir a que João, no êxtase do remorso, eleva o infeliz Casquinho. Sentimento este de verdade animal, ou seja, João torna-se sapo para chorar a morte de um sapo. Infelizmente, João ser humano, embriagado e fora de si, age igualmente a todos que, racionalmente, odeiam cururu e o expulsa porta afora com vassouradas e punhado de sal jogado no couro frio e grosso daquele que é tolerado apenas como "escravo" a vigiar potes e charcos no canto do muro, ou ainda como elemento negativo de alto valor místico em ritual de macumba, no qual se costura a boca do animal com a foto de quem se quer, se não morto, caído em desgraça por cobiçar o amor de quem bota fé na boca do sapo.

E por falar em maus-tratos do bicho que coaxa e enobrece a noite com o canto do inverno à beira de poças d'água e lagoas, será que existe neste mundo cada vez mais barroco defensores de sapo cururu espancado ou costurada a boca em ritual de magia?


Ana Barros
Natal, 25 de outubro de 2015.