quinta-feira, 22 de novembro de 2012

CIRCE


Talvez por uma questão de segurança, facilidade na aceitação das idéias, cumplicidade de afetos, ou por mera afirmação naquilo que acreditamos próprio dos    anos que temos,   ou  ainda por pura pretensão e desinteresse pelo que é diferente, nós, os     inquietos outonais temos a tendência a escolher como parceiros de amizade, ou de amor,  aquele cuja idade se aproxime da nossa.
É cômodo tagarelar na presença de alguém em quem podemos projetar a nossa sombra. Sombra que nos arremesse para um espelho espiritual. Outras vezes, o discurso performático de nervos, de verbo, de gestos e nuances, deixa-nos cegos ao mundo em redor e de olhos voltados para as próprias entranhas. O que aí conta é a exibição estouvada de nossas vaidades. Nesse tipo de conversação em que esquecemos da presença do outro, experimentamos um êxtase comparado ao sentido por evangélicos fanáticos no auge do devaneio religioso. Somos tão autossuficientes em nossos juízos de valor quanto um deus.  Que mundo haveria além da inquietante subjetividade que nos faz sentir acima dos demais? A objetividade, a atenção para o mundo circundante ficam para mais tarde quando o tempo cuida de acalmar a ansiedade, de fechar as asas cansadas. Em Seis propostas para o próximo milênio, Ítalo Calvino fala belamente dessa temporalidade invocando os mitos de Mercúrio, ou Hermes, deus alado da comunicação e do princípio de individuação, e Vulcano, ou Hefaísto, “deus que não vagueia no espaço mas que se entoca no fundo das crateras, fechado em sua forja onde fabrica interminavelmente objetos de perfeito lavor em todos os detalhes – joias e ornamentos para os deuses e as deusas, armas, escudos, redes e armadilhas”. Num momento somos ágeis, alados e o mundo a extensão ególatra de nossos voos. Noutro, possuídos pela consciência da morte e do gozo único sobre a terra, podemos forjar na toca em que caímos com o nosso peso temporal, os mais belos instantes de prazer do mundo translúcido.
Fôssemos menos nervosos prestaríamos a atenção nos adolescentes e, particularmente, em algumas mulheres que chegaram além dos sessenta e a nossa escolha preferencial por companhias sofreria um abalo vertiginoso. Descobriríamos espantados a quantidade de tempo em que estivemos ensimesmados, mesmo na aparente companhia de outros, enquanto outras pessoas, na ponta inicial os adolescentes, e as mulheres pós-sessenta no final da escala em que nos posicionamos ao meio, ou não desenvolveram ainda um olhar inteiro (moral), ou já o cegaram de vez. Somos pois o grau maior de uma tensão aniquiladora. Estamos agonicamente situados entre o caos do princípio e a possibilidade da ordem, que é o fim.
O problema dessa escolha arbitrária é a singularidade existencial das mulheres cuja realidade privativa e subterrânea tomou um rumo diferente daquele conquistado pelos homens, que é o espaço exterior, a vida objetiva. Déssemos trégua à ansiedade por seres semelhantes a nós mesmos e apurássemos os sentidos na direção desses dois grupos que tanta reprovação provoca nos espíritos sensatos e comedidos e a promessa da felicidade seria então uma efetividade em nossos dias mais lúcidos e produtivos e não um acaso do destino, fatalmente selado como ideal no fim da jornada.
Os impulsos ainda incondicionados do adolescente só diferem num aspecto da força “desorganizadora” da mulher pós-sessenta. Aquele é um desbravador, um deus rebelde e inconsequente que tudo pode, um sátiro dando cambalhotas num destino que se prenuncia. A mulher pós-sessenta, pela imposição cultural de sua época, obrigada a frear a fúria primordial na profissão ou no casamento, adormece os impulsos para mais tarde, livre das gravidezes e dos filhos já adultos, lançar o seu grito de liberdade. Distante da tagarelice maníaca dos adolescentes e cheia de desprezo pela velhice adere a uma fina ironia, algumas vezes torna-se até rabugenta e utiliza-se de um humor ácido e debochado para enfrentar resignada a vida insípida ao lado dos filhos indiferentes e do marido maquinalmente silencioso. É a anti-Medéia liberta das peias do pudor e das obrigações conjugais. Mataria os filhos não por ciúme do marido infiel mas pelo retorno à liberdade perdida. Emancipada das mamadeiras, das fraldas e de um sexo frio, essa aniquiladora de valores seria agora bacante não fossem os anos de exaustão física e mental consequentes de uma rotina diária de fadiga e repetição, o preconceito em torno da velhice, a moral social e familiar diante do comportamento dessa fêmea que se tornou mulher tardiamente.
Um tipo mulher síntese do sabor e da sutileza doce-amargo do que é humano, ela experimentou toda a sorte de derrotas, frustrações e êxtases místicos, intuitivos (menos sexuais), sem contudo manter grande intimidade com o espaço lá fora. É dentro da própria casa, em contato com os filhos e o marido, que adquire vícios, aprende a manipular os sentimentos e incorpora ao longo do tempo uma personagem em desacordo com a que vinha desempenhando como mãe e esposa. É no devaneio que essa deusa, cínica e erotizada, lúcida de sua derrota, dá um soco na pudicícia paralisante da família e, mesmo confinada entre quatro paredes, agride a vergonha daqueles que a queriam deserotizada por ser “uma senhora”.
É comovente a ânsia de viver dessa que sabe já ter consumado uma enorme quantidade de vida. Sobra-lhe pouco tempo... Descobre-se real, um em si capaz de amar e ouvir os apelos carnais do mundo. Perdeu a moral e o respeito que a alimentaram até então. Não tem mais drama interior.
Mas o físico dessa heroína da despedida não está em harmonia com o intelecto. Precisa agora de artifícios para sobreviver como bengala para as pernas reumáticas, óculos para a vista cansada, prioridade em filas de banco e supermercado, pois é idosa, etc., etc. No entanto, nuca esteve tão lúcida, apesar de ninguém na família dar atenção às suas conversas nem valorizar o seu saber. Ela lê desolada nos olhos de todos uma mistura de raiva e intolerância pela inutilidade a qual se transformou. Não vê saída senão resignar-se ou fingir.
Adolescentes e pós-sessenta são dois extremos de uma felicidade sem regras. Em ambos, a fruição natural desse estágio psicológico é sufocado primeiro pelos pais, aliados do Estado e das instituições em geral, detentores de poderes soberanos sobre a vida e a educação de homens e mulheres. No segundo momento, pelos filhos que, já adultos, profissionais e sem tempo para perder com conversas ociosas, fazem vista grossa à pessoa que ronda no entorno da casa como um espectro que todos esperam ansiosos a hora de sumir de vez.
Não fosse a invisibilidade em que é transformada, os filhos compreenderiam a dramaticidade e mesmo certa dose de humor denunciados nos gestos da mulher que são o resumo simbólico da saga familiar. Simbólico que é de todos e de cada um daqueles que são impotentes para desfazer a malha conflituosa cristalizada numa única pessoa, a mãe, que se joga involuntariamente sem mais nenhuma chance de interferência no mundo, com a sua ironia estéril, com o seu distanciamento teatral da mesmice cotidiana em que viveu até se dá conta de si mesma. Em seu devaneio somente ela no reduto doméstico consegue rir de si e dos outros numa aura de lucidez disfarçada na insensatez.


 Por que  perdermos tempo falando e ouvindo a voz lamurienta da moral quando deveríamos atentar para a grandeza dessa Circe contemporânea que, do alto de sua magia, transforma todos ao seu redor em porcos, ou para a irresponsabilidade juvenil? Não existe resposta, pois as viagens são empreendidas de forma nebulosa no labirinto que não permite ao viajante enxergar o ponto de chegada.

Ana Barros