Um dos contos mais surpreendentes de
Kafka, Um artista da fome, conta a
exibição pública de um jejuador de circo, cujo espetáculo principal tem como
atração a contemplação da multidão do homem faminto e esquálido dentro de uma
jaula. No início, o jejum programado para durar 40 dias, por exigência do
jejuador, se estende por tempo indefinido até consumar-se na morte do artista.
Entremeado de imagens que nos levam
tanto ao homem e à época que se despede (idealismo/romântico), quanto ao outro
momento que se anuncia (moderno), Kafka introduz em sua prosa o abandono do
indivíduo em função da supervaloração da multidão e do gosto massificado do
espetáculo. Sedento por novidades, o público se cansa do ritual diante da jaula
e parte para outras diversões. O empresário, que vê a cada dia a multidão
debandando, dispensa o jejuador e este se oferece para trabalhar num grande circo com sua infinidade de homens ,
animais e aparelhos que sem cessar se substituem e se complementam uns aos
outros... E, já tendo passado muitos e muitos anos jejuando sem ser visto
por um público agora indiferente tanto à fome quanto à causa real de seu
enfraquecimento, talvez sua esquelética
magreza proviesse de seu descontentamento consigo mesmo, o homem estava
completamente coberto pelas palhas que forravam a jaula, tendo um inspetor
passado por lá e perguntando por que deixavam a jaula desocupada, quando
deveria ser ocupada por algum animal, foi aí que se deram conta de que o
jejuador arquejava.
Aqui talvez o instante supremo do conto quando o inspetor mantém o único diálogo da história com o jejuador. Este aproxima os lábios com dificuldade do ouvido do outro e responde por que continua a jejuar: – Porque – disse o artista da fome levantando um pouco a cabeça e falando na própria orelha do inspetor para que suas palavras não se perdessem, com lábios alargados como se fosse dar um beijo -, porque não pude encontrar comida que me agradasse. Se a tivesse encontrado, podes acreditar, não teria feito nenhuma promessa e me teria fartado como tu e como todos. Morre logo depois. Os empregados limpam a jaula e jogam fora o corpo magro misturado às palhas. Em seu lugar puseram uma pantera jovem, cuja energia e alegria de viver atraíram a multidão, que voltou correndo a comprimir-se contra a jaula.
Há nessa metáfora, até certo ponto
cômica, a angústia do homem moderno em descobrir-se dividido entre a negação de
uma existência que, na sua cada vez mais avançada civilização tecnológica,
despreza o indivíduo em função da massificação de consumo e diluição do que até
então parecia eterno, como bem deixa antever no texto a mudança constante dos
empregados do circo e a insistência em continuar na mesma condição de jejuador,
ou seja, na esperança mítica de que a existência tenha compaixão do infeliz caído
no mundo e ofereça o paraíso reconquistado dos filhos de Caim. Mas a natureza indiferente e a vontade de
potência, mais animal que humana, forçam o homem lúcido a enfrentar a vida,
mesmo com toda a estupidez das multidões, com o vigor e a esperteza de uma
jovem pantera.
A sensibilidade do artista da fome,
que o desarma e enfraquece diante da corrente existencial dos fatos, aniquila
qualquer movimento em direção ao salto sobre a desordem. Jejuar pode ser ainda
o ato mais provocante da vontade de nada, pois o mundo com suas pessoas e
vulnerabilidades não promove o alimento necessário para um ser cujo corpo deprime
das inquietações do mundo.
Kafka nos mostra com seu herói
fracassado a outra face moral da vida. A pantera cheia de energia é a superação
sutilmente revelada como símbolo transfigurador e a justificação da existência
com o que há de enérgico e vibrante. Para aquele que sobrevive do olho e da
compaixão do outro em sua inutilidade humana, restam a indiferença e a morte.
Ou o eterno jejum metafísico.
Ana Barros