Para quem leu O estrangeiro, Camus pode parecer um
escritor estranho com seu personagem avesso às convenções e ao comum da cultura
humana. Mata por motivo fútil, não sofre à morte da mãe e não ama Maria, apesar
da sensualidade e de tudo girar em torno das sensações do corpo. Na frieza e no
absurdo da história nos identificamos e somos levados a fazer uma leitura transfigurada
do pequeno romance. Camus, em sua estranheza, nos força a agir na lucidez, mesmo
quando a consciência fica clara na solidão mais atroz, aquela que antecede a
morte.
A
morte feliz, romance póstumo, talvez um esboço de O estrangeiro, uma vez que os originais
são anteriores à publicação deste, entre 1936 e1938, tem o personagem central
com o mesmo nome, Mersault, e trata do mesmo tema, a revolta do homem diante do
absurdo existencial, do qual não tem saída a não ser por meio do suicídio (O mito de sísifo, do mesmo autor), ou aniquilando
a revolta no fogo da paixão clarividente da existência. “A conquista da autenticidade por um movimento na solidão e na natureza”
justifica A morte feliz.
Ao contrário de Fausto (Goethe), protótipo do homem moderno,
ativo e hedonista, o herói ocioso de Camus defende a inação sem contudo
abandonar a entrega erótico-sensual de seus dias à natureza luminosa do sol, do
mar e dos corpos femininos sem jamais se entediar nem sair à cata de paraísos
artificiais. As mulheres, a amizade com elas, o sexo, o sol e o mar, símbolos
da sensualidade, são presença marcante nos textos de Camus, sem com isso haver qualquer
entrega nas relações cotidianas e comuns dos casais. Tanto em O estrangeiro quanto na Morte feliz, Camus procura
despersonalizar o máximo para poder mergulhar na pureza e concretude da natureza
e aí, na solidão e comunhão de iguais, ser feliz. “Até aqui, vivera. Agora, podia-se falar de sua vida. Desse grande e
devastador arrebatamento que o levara para a frente, da poesia fugaz e criadora
da vida, nada mais restava agora senão a verdade sem rugas que é o contrário da
poesia.”
Grande leitor de Kafka e
Dostoievski, Camus aborda o niilismo de seu personagem por um viés
completamente amoral, humano em todos os sentidos, fugindo assim da perturbação
judaico-cristã que tanto atormentou os dois escritores e tantos outros artistas
que jamais conseguiram libertar a imaginação dos fantasmas religiosos. Camus
rompe radicalmente com a metafísica, seja ela oriunda de religiões, da ciência
ou mesmo da filosofia. O homem de Camus deixa o romantismo e a tragédia de lado
para se assumir com toda a carga que o mundo comporta. Revolta-se, perde-se,
agoniza em meio ao absurdo que é saber-se mortal e que nada tem sentido no
universo. Mas esse mesmo homem, alerta e lúcido de toda a sua tragédia, se faz soberano
de si mesmo e justifica-se no tempo finito como um Dom Quixote pleno de suas
faculdades mentais, não devorando noite adentro romances de cavalaria, porém,
virando as páginas destes num desprezo claro de quem alcançou a verdade. “Não se nasce forte, fraco ou com força de
vontade. As pessoas tornam-se fortes, tornam-se lúcidas. O destino não está no
homem, e sim à sua volta”, pensa Mersault perto de morrer.
ASSASSINATO JUSTIFICADO
Ao ler A morte feliz, possuídos da moral que nos impede de matar o outro,
tendemos a ficar chocados com a frieza com que Camus leva seu herói assassinar
um homem para poder ganhar a sua liberdade, pois que o outro tinha o que ele
precisava, dinheiro. Patrice Mersault é um funcionário medíocre que trabalha
oito horas diárias e não consegue tempo livre nem dinheiro para viver com
prazer. Conhece o ex-amante de Marthe, sua atual namorada, Roland Zagreus,
deficiente de cadeira de rodas, rico, culto e educado, que passa a gostar de
Patrice e com este mantém diálogos reflexivos que estimulam Mersaut a matá-lo e
roubar a fortuna guardada pelo inválido.
As semelhanças com Crime e castigo
são bastante visíveis no sentido niilista dos personagens principais em
matar por considerar o outro desnecessário ao mundo, a velha de Crime e castigo por ser desprezível em
sua usura e o outro, Zagreus, por ser metade homem, não tem as pernas, e não
dispor do tempo e do dinheiro com a liberdade plena de existir, desejada por
Mersaut, jovem, atlético, viril e consciente das limitações existenciais para
as quais toda a moral perdera o sentido.
Longe das angústias e da
culpa que atormentam o antes racional e autossuficiente Raskólnikov, Patrice é
lúcido e “inocente” de qualquer traço
de arrependimento. Mesmo quando ensaia uma confissão ao amigo Bernard, “Não porque o segredo lhe pesasse. Não havia
segredo nisso. Se até então se calara, era na medida em que, em certos meios,
guardam-se os pensamentos, por saber que se chocariam com os preconceitos e a
estupidez”.
Camus trata a lucidez com
tanta veemência que, para nos convencer do real poder humano em sua finita
existência, utiliza-se do assassinato como símbolo para nos fazer refletir
sobre a inutilidade da moral quando tudo é permitido entre os homens, até mesmo
matar o outro. Se Ivan Karamazov duvida: “Se
Deus não existe, tudo é possível”, Mersault não expressa nenhuma dúvida, sabe
que é mortal e também o que quer do único mundo que conhece. E o que ele quer
do mundo é real, táctil, natureza e não ideia.
Patrice Mersault poderia ser
um boêmio, ou o dândi tão cobiçado por poetas da França do século dezenove, mas
ele é lúcido demais para ser um decadente.
Enquanto o herói russo encontra redenção no sofrimento e na expiação da
culpa, Mersault considera todos os atos humanos inocentes, uma vez que não há
nada além do corpo que quer e da lucidez que se entrega. “Se sou feliz, é graças à minha má consciência. Senti necessidade de
partir e de conquistar esta solidão na qual pude confrontar dentro de mim tudo
o que havia para ser confrontado, o que era sol e o que eram lágrima... Sim,
sou humanamente feliz.” Aqui a ênfase nitzscheana do amor fati, da
conquista da autenticidade de um homem-deus. A morte vai encontrá-lo com o
mesmo olhar e com o mesmo desejo. “E,
pedra entre pedras, ele retornou, na alegria de seu coração, à verdade dos
mundos imóveis.”
Ana Barros