Saí
de casa sem nenhuma pretensão à felicidade. Saí por pura vontade de mundo, nada
mais. Nem tédio nem alegria, apenas o contentamento por achar-me entre
estranhos e saber que as possibilidades de me desencontrar eram enormes e nada fazer para ser diferente.
Pisava
João Pessoa pela primeira vez. E, ao chegar naquela cidade calma, limpa, organizada e sem o comércio caótico de ambulantes no
Calçadão da linda praia de Tambaú, tive a sensação de que ali encontrava “a promessa da felicidade”, que eu havia
desprezado na turba de Ponta Negra, mas ressurgida naquele paraíso onde os homens pareciam ainda mamar nas tetas da Mãe-Terra.
Logo
deslumbrei com a aparência de paz e equilíbrio surgida das ruas e casarões
conservados como se os seus donos doutrinassem do além regras e costumes, ainda
tão vivos entre povo e cultura.
À
noite, como em todas as excursões, os grupos se dividem por afinidade e ganham
os espaços oferecidos pelo pacote turístico ou então se aventuram a conhecer os
recantos mais exóticos e excluídos do roteiro fechado entre agência e guia. Mas
em J.P., como repetia o guia tagarela, só havia três opções de lazer: a Orla de
Tambaú, o Shopping Manaíra ou ficar em casa. O meu grupo escolheu passear no
Calçadão de Tambaú. E a surpresa foi enorme ao me deparar com uma realidade
completamente oposta a que vivenciara em Ponta Negra. Encontrei pessoas felizes
passeando como se estivessem numa pracinha do interior. E não são doidinhas nem playboys que invadem o Calçadão, não. São pessoas simples, comuns
do dia a dia de uma cidade de porte médio como J.P. São moradores acostumados a
passear, sim, passear como antigamente, sentar nas beiradas das calçadas, namorar,
entabular uma conversa com o compadre ou a comadre, chupar roletes de cana,
sim, em J.P. vende-se roletes de cana, enormes tapiocas recheadas de coco,
carne e queijo acompanhadas com enormes canecas de café servido em bules de
alumínio. É um momento de encontro, diversão e gastronomia caseira, daquelas de
sentar no mercado e comer com muito gosto, sem a preocupação com a fria e falsa
etiqueta de shopping center.
Depois
de andar para cima e para baixo, de me acomodar entre dezenas de pessoenses
famintos e alegres e de comer a minha tapioca com coco e tomar a caneca de café
preto, voltei ao Calçadão na esperança de encontrar algo comum em outras
capitais: a pulsão urbana, a vida noturna que escorre nos becos, a contradição
escondida à luz do dia dos normais.
Mas quê! Nenhum sinal do diferente, nenhum mendigo, nenhum noiado, nenhum ladrão; nenhuma prostituta, nenhum veado, nenhuma
garota de programa, nenhum punk ou tribo
de preto, nenhum camelô vendendo qualquer tipo de mercadoria. De repente parei
de andar e sentei-me com os demais na beira da calçada e me espantei com a
tranqüilidade que tomou conta de mim diante daquela ausência de movimento e decibéis
acima do suportável no interior de carrões importados, de crianças e marmanjos
insistindo por uma esmola ou pela aquisição de alguma quinquilharia. Porém... não
o estalo do belo sentido no caos de
Ponta Negra: “como, será possível que em tão pouco tempo eu tenha esquecido o
outro lado da vida pulsante, das forças antagônicas encarnadas naquele domingo
em Ponta Negra?” Foi então que me dei conta de que os valores, moralmente
fortalecidos e adormecidos na cultura do em torno, ainda sombreavam o meu poder
analítico tanto quanto a opressão simbólica dos casarões sobre os costumes de J.P.,
a qual, tanto no nome quanto na bandeira do Estado da Paraíba, com seu slogan Nego (afirmação do próprio João Pessoa
na querela da política café com leite) banhado de vermelho, sangue de João
Pessoa, e do preto, luto por João Pessoa (governador da Paraíba assassinado em
1930), carrega o peso da vaidade de um único homem e da exclusão da maioria,
justificada pela História oficial.
Retornei
a Natal três dias depois cheia da ingênua alegria romântica de paraíso
reencontrado e logo quis compartilhar com meu filho a surpresa de encontrar um
lugar tão natural e ainda limpo da civilização globalizada. Qual foi o meu
desapontamento ao ouvi-lo dizer enfático: “Mãe, João Pessoa é uma cidade macho;
povo e elite!” Foi aí que a minha ignorância sócio-antropológica foi ao chão.
Foi aí que enxerguei o porquê de “limpeza” da cidade; de seus prédios sem as pichações
e sem os graffitis tão característicos dos centros urbanos da atualidade; do
secretário estadual de cultura Chico César declarar à imprensa que o governo
não iria financiar duplas sertanejas nos festejos juninos; da ausência dos
“malucos”, dos travestis, dos drogados, das garotas e dos garotos de programas,
dos vendedores ambulantes, dos moradores de rua, enfim, de tudo aquilo que, no
meu tédio moribundo-pequeno-burguês, havia odiado em Ponta Negra.
Percebi
que em J.P. havia, voluntária ou não, uma contenção, um controle das pulsões de
homens e mulheres. E como na existência nada acontece sem o seu oposto, sem a
sua negação, imaginei a sede de liberdade e de contradição enclausurada,
escondida, dissimulada em alguma parte da cidade. Possivelmente há indivíduos atuantes
na periferia do núcleo cultural que, independentemente do poder cristalizado, transcende
de forma niilista ou não a morte da cultura.
A
imagem perfeita para concluir este artigo não poderia ser outra senão a de Báucia e Filemo, personagens míticas do Fausto
(Goethe), cuja casinha em cima de um monte era o que ainda insistia de permanente
num mundo fluído e moderno. Fausto, em sua cegueira desenfreada por
desenvolvimento e fuga do tédio, não suporta a visão daquele pedaço de memória e
manda tocar fogo nos velhos e na casinha. Ergue-se no local mais um novo empreendimento.
Ana Barros