segunda-feira, 21 de março de 2011

Obscenas

Tantas vezes ido e vindo até chegar em mim
Anfitriã do que é de todos e de ninguém: o presente
Nele não posso ficar...
A roda gira e joga para trás...
A roda gira e ressurge à frente...
Cenas...
O mundo novo de novo é
...........................Tempo.............................

Ana Barros

quinta-feira, 17 de março de 2011

Cheiro de seiva de alfazema

Objetos não morrem
O capacho à porta do banheiro
Não sabe o tempo que o esfrega e molha
Os utensílios da cozinha
Ordenados em tábuas suspensas acima do fogão esperam
As mãos que tocam os primeiros acordes:
Pedro dorme feliz ouvindo a mãe pisar o alho
E as latas de leite vazias enferrujaram na mesa gasta

Aroma das folhas mortas do jasmim e do Segundo Sexo de Beauvoir
Entre as teorias também mortas de Beth Friedman e Muraro
Acende a luz no canto escuro da estante junto à roupa rosa desbotada
Costurada na máquina de pedal Mercswiss decorando
A sala

À tarde as sombras provocadas pelos fungos suspensos
No muro de tijolo avermelhado
E as imagens surreais das telhas mofadas
Trazem lagartixas preguiçosos que passeiam lânguidas pelas frinchas

Mais uma vez abre a mala de madeira vinda de casa
E o cheiro de Seiva de Alfazema é carnaval fantasia papangu
Infância sem guarda

Ana Barros

sábado, 12 de março de 2011

Retrato da morte

Eternamente cheio. Enfermarias coletivas. Pacientes nos corredores sobre macas: o Hospital público é humano. Os quartos jamais ficam vazios nem de portas fechadas. Façamos uma visita num dia qualquer da semana e perceberemos a falta de privacidade dos enfermos. Caminhando pelos corredores vamos dar com a vergonha e a intimidade alheias arbitrariamente expostas a quem quiser ver. Criaturas pálidas, esquálidas, quase nuas pela funcionalidade ridícula das batas ou pela completa falta de roupas e de atenção dos familiares e dos funcionários, olhos profundos e resignados pela dor, dóceis aos afagos de quem os percebem: um espetáculo da dor do outro. Dentro do Hospital público todos são obrigados a abrir mão da vergonha e da vontade de poder: obedecem.

O Hospital privado é diferente? Em termos. Há neste, devido à ostentação de padrão de consumo elevado, ou da cultura do medo da morte, junto à falência da saúde pública, que força a classe média comprometer boa parte de sua renda com plano de saúde, um certo recolhimento do paciente. O quarto, não! apartamento, é individual, limpo e asseado. Apenas amigos mais próximos e familiares entram nele. Para o doente, conforto e minimização dos sofrimentos e constrangimento que acarreta o momento. A porta se fecha. Esconde-se o sofrimento atrás das paredes, debaixo dos lençóis e sob analgésicos poderosos. A mística da compaixão coletiva, quando se trata de pessoa pública, tende a aproximar esse tipo de enfermo à imagem do santo. Distanciado de todos e cobertas as feridas, ele padece, ou convalesce, longe de olhares mórbidos e curiosos, cuja repulsa do que é humano exige a morte como troféu, pois sua condição (do enfermo) pequena foi aberta ao mundo e este não suporta fraqueza, arranca tudo o que deu de graça: força, viço, juventude, poder. Deixa para trás apenas ossos e uma precária consciência não importa se pobre ou rico.

Mas o pior é quando o enfermo é anônimo no Hospital público. Sozinho, doente e indigente. Recorremos demasiado ao termo indigente sem nos dar conta de sua perversa significação. Indigente não seria... não gente? O doente está lá, estirado ou encolhido no leito, em silêncio absoluto. Sofre. Fala com o invisível, ninguém o socorre, nem pode. Num estágio já avançado da doença esquece... Entrega-se. Falam apenas dois olhos sem mais vestígios de esperança. Mas o olhar do enfermo do Hospital público, talvez por ser público, é pesado de redenção, se faz gente. E o que é feio, hediondo ao nosso juízo de valor, na contemplação desse doente se transforma em essência de nós mesmos, ou beleza que se confunde com a morte. Não sabemos aí o limite entre as duas, beleza e morte, uma vez que conhecemos a ambas; uma vez que estamos, depois de contemplar a miséria do outro, plenos de nada, ou de nós mesmos?

Ana Barros