domingo, 28 de janeiro de 2018

O retrato de Doriana

Enquanto fecho as caixas da mudança pego a tela velha e atiro ao monte de coisas descartadas com destino ao lixo. Porém, mais uma vez entre tantas, olho com pena e remorso para o pobre quadro que um dia ousei chamar de arte. Tem 13 anos. Tempo suficiente para desbotar as flores do pano de chita que colori o capacho adquirido a R$ 1,99 na loja do chinês: brincadeira feita com o ordinário que tem o tempo datado à próxima ida ao importado da Rio Branco. E eu não me canso de ir ao importado da Rio Branco... Todas as aquisições rasgam ou se quebram mal chego em casa. Mesmo assim, sinto imenso prazer em encontrar aquelas coisinhas da China: coloridas, pequeninas e lindas. Mas a feiura da tela de flores envelhecidas sorrindo com meiguice senil ao tapete velho jamais rasgou ou quebrou, resistência que ajuda a não jogá-la fora, ou a correr a salvá-la da lixeira, o que fiz de novo.  Depois de resgatá-la dos escombros da mudança, depois de banhá-la em cola branca, de alisar pra lá e alisar pra cá os tecidos enrugados e manchados de bolor, paro espantada ao ver que somos iguais, a tela e eu. Outra vez a acaricio e dou a ela não o destino vulgar da indiferença, à qual damos às coisas pobres, velhas e feias.  Penduro o retângulo de compensado de frente para o espelho, no qual nos olhamos com a certeza de que eu sou ela.

Ana Barros

Natal, 21 de janeiro de 2018.

Nenhum comentário:

Postar um comentário