sábado, 8 de outubro de 2016

Réveillon



De novo era Ano. Eu acabava de fazer setenta e cinco anos e descobria, ali, no Réveillon de oitenta e dois, que havia esquecido a sociedade. Não que eu tivesse de esconder algum complexo de baixa estima, padecesse da rejeição dos meus camaradas ou tivesse enlouquecido da indiferença do mundo: nada disso era conveniente ao homem que jamais tivera fé e convicções em relação a qualquer coisa ou sentimento. Ateu, assim fui mesmo quando acreditei. Pois bem, naquele Réveillon eu estava lúcido e vazio. Vazio das confusões mentais com as quais estendi a minha loucura no mundo como extensão de mim. Aliás, uma extensão deveras inútil uma vez que sempre estive sozinho quando pensei ser com um, dois, três... A minha mulher, que não conhece vazios, diz que sou um egoísta, um misantropo. “Nem uma coisa nem outra”, respondo desinteressado em levar adiante assunto até pouco tempo motivo de discussões azedas das quais eu saí sempre derrotado e com a sensação de ter engolido uma pedra. Apesar de termos uma pequena diferença na idade compreendi que até ela, companheira de 40 anos, jamais havia sido outros senão ela mesma. “Ser outro é tarefa maldita que exige encher e esvaziar o estômago o tempo todo”, dizia ela simulando vômito. Tive que passar muitos Réveillons para chegar a esse entendimento: por que não sabia desde sempre a verdade sobre o peso de imaginar-me múltiplo? Quis lançar a culpa sobre minha insensatez: não fui eu quem arranjou os encontros, conversas, intrigas e rompimentos? Não fui eu quem inventou estratégias para forjar uma relação de amor? Sim, fui eu! E não podia ser diferente se o ímã desprotegido que chama à pele as migalhas da afeição, agora gasto, despenca e cai do corpo fechado. Pois bem, em vez do tédio no qual mergulhei em todos os festejos do Ano Novo, aquele de oitenta e dois foi incrivelmente diferente e feliz. Diferente pela sensação que ali nascia sob a qual eu enterrava de vez os mortos que haviam me obrigado à gula e à frivolidade em todos os Réveillons até ali. Feliz, pela alegria até então desconhecida de ser irônico em vez de amargar o tédio. Aprendi ali a gozar com a ironia que aniquila qualquer vestígio de seriedade que imaginei haver entre mim e os outros na entrada de Ano Novo. A prova da felicidade estava ali à minha frente: ao redor da mesa. Todos de branco, risonhos e aparentando jovialidade como se a festa de final e início de calendário fosse naquele dia exclusivo a primeira de nossas vidas cansadas. Quantas vezes ainda iríamos repetir a data que, em vez de alongar a existência, encolhia mais e mais os nossos dias de futuro consumado? Os mesmos pedidos, os três pulinhos na onda do mar, as oferendas a Iemanjá, a lentilha, a romã, os abraços doídos entre músculos fracos e velhos... Era ao tempo que rendíamos graças desde a primeira confraternização. O tempo, agora zerado da ilusão de que o novo nasce uma vez mais entre o anoitecer e o amanhecer de um único dia. Estourei o champanhe... Enchi-me da felicidade de todos repetindo os gritos e urras. A minha alegria era tão falsa quanto o brilho colorido dos fogos de artifício queimados a alguns metros da praia. E foi naquele Réveillon que enterrei de vez a fé sem fé que me levara a exaurir qualquer possibilidade de começo ou de fim. Naquele encerramento de mais um calendário eu compreendi que no lugar da necessidade de limite e ilusão de começo tínhamos a vastidão aberta do meio dia que não conhece vigília nem sono. Lembrei com gratidão as palavras do poeta Pópó, a quem jamais dei ouvido, a quem nunca tive o atrevimento de convidar para o Réveillon. Ele, invariavelmente bêbado no último dia do ano, diz para a plateia de amigos no bar A derrota: “pode o padre repetir em todas as Missas do Galo que o novo ano começa. Pode a ciência inventar fórmulas e oferecer eternidade aos homens, mas enquanto houver dia e noite eu estarei bêbado e sem tédio.” O tédio, que não suportou a ação continuada das horas debaixo do esplendor de fogo àquela hora do dia primeiro, deslizou sonolento entre os convidados crentes de começo.  

Ana Barros
Natal, Jan/2016